Viver é sempre
possibilidade, potência de criação. Somos seres repletos de habilidades escondidas
nas entranhas de nosso corpo. Muitas vezes acreditamos que as grandes obras
artísticas são presentes dos deuses, dadas a alguns escolhidos. Na verdade,
somos todos os escolhidos, porque a vida é uma obra de arte inacabada. Sendo assim,
temos a possibilidade de nos recriarmos a todo instante.
A palavra “arte”, do
latim ars, significa também
“habilidade”. É a manifestação humana a partir de uma ideia (imagem mental),
direcionada pela emoção (movimento para fora) do corpo. Tudo sempre surge e
termina no corpo. O corpo é o palco de manifestação daquilo que trafega em
nossas ideias. É como uma grande tela em branco que se transforma em uma linda
obra de arte. A ideia surgiu na mente do artista para se manifestar na
tela. Estamos criando algo novo a todo momento,
nem sempre compreensível à razão. A revelação será reconhecida no futuro, no
tempo do porvir. Contudo, tem de existir atenção ao presente.
A arte é a habilidade
de gerar fascínio. Quando somos maduros somos fascinantes, porque conseguimos
ser quem somos. Desse modo, mostramos – sem exibir – a nossa arte, criada ao
longo de nossa história. Quando somos maduros aceitamos a nós mesmos de maneira
simples, sem retoques. E não precisamos mais do reconhecimento alheio, porque
já reconhecemos o nosso verdadeiro valor. Então, se tudo está nas entranhas do
corpo, não existe lugar a ser buscado. Não é preciso nenhuma viagem espiritual
até locais longínquos.
Reabilitar como Conversão
O que precisamos mesmo
é adquirir um novo olhar. Como na conversão de Saulo nos caminhos de Damasco.
Ao cair do cavalo, literalmente, ele tenta se reerguer do chão, e percebe sua
cegueira. A luz divina foi tão intensa que o cegou, porque até aquele momento
ele não tinha bons olhos para ver a pureza. A conversão de Saulo não foi apenas
uma conversão da razão, mas, sobretudo, uma conversão do coração. Deus foi tão
compassivo com Saulo que o levou ao chão. Antes de se tornar Paulo (o pequeno,
o humilde), ele teve de sofrer a queda, à doença dos olhos, a incapacidade de
enxergar. Ele teve a oportunidade da reabilitação, porque antes era um homem
terrível, um perseguidor. Quando Saulo ouve a voz, como o brando murmúrio do
vento: "Saulo, Saulo, por
que me persegues? Ele então pergunta: “Quem és tu Senhor”?". E a voz
responde: "Eu sou Jesus a quem tu persegues” (At 26,14-15).
Reabilitar é mudança de hábitos
Vivemos cegos, e por
não suportar a luz da sensatez usamos óculos escuros da distração. Vivemos
surdos, e por não suportar a voz do silêncio usamos os fones da dispersão. Não existe conversão sem que atravessemos
desertos. A doença, por assim dizer, não é o mal, e sim um convite à conversão.
É preciso fé e coragem para se reabilitar. Às vezes podemos pensar que a luz
divina é só para os escolhidos, porque acreditamos na conversão somente dos
santos. O chamado só pode existir para os pecadores, aqueles que erram o alvo,
insistem no erro pela teimosia e resistente à mudança. Mudar é difícil, porque
quando a alma é retirada pela raiz de suas antigas condições de vida, quando
nos é infundido um novo modo de viver, o nascimento só pode ser doloroso. É
como as borboletas que passam um tempo na crisálida rígida, até conseguirem se
libertar ao voo. Tudo passa, e sempre passará.
A teimosia não é nada
mais do que o temor pelo diferente, do desconhecido. É preciso movimentar-se
para mudar. Resistir à mudança não nos fará melhor. Pelo contrário, nos dará
couraças rígidas, respiração superficial, encurtamentos dos músculos, perda de
flexibilidade e, consequentemente, uma vida mais difícil. Estamos em processo
de mudança permanente – a única coisa permanente na vida é a mudança – porque
envelhecemos.
O corpo é o palco, o
script a mente. Podemos sim retornar para dentro de nós e seguir adiante. Por
isso, não se deve esperar acontecer. A espera, muitas vezes, é instrumento da indolência.
Portanto, se somos autores de nossa própria obra, somos nós que temos de agir.
Atuar no agora para que algo surja no âmbito do real. Temos escolhas porque
somos os escolhidos.
Poder como Possibilidade
Podemos acreditar que
somos seres comuns, sem talentos, sem grandes atrativos. Olhe a sua volta e
veja o que você já construiu em sua vida. Sempre estamos edificando algo,
criando arte. Ou seja, vivemos gerando habilidades para nós mesmos e para os
outros. É o fruto que cresce em terreno propício. Esta é a nossa verdade, o
poder como possibilidade.
Porém, num mundo
competitivo o poder também passou a ter outras nuances, deixou de ser verdade
porque se tornou dominação. Quem quer dominar o outro vive contra o fluxo da
natureza humana. Por isso, a palavra “controle” quer dizer rolar contra. Compreendo que esse tipo de poder existe para as
pessoas que sentem medo. A obsessão do medo toma conta do cenário mental
daqueles que se perderam de vista.
Quem tem medo permanente não tem fé. É natural
ter medo quando há perigo, mas elucubrar ilusões de ameaças não é uma condição
saudável. Quem compreende a verdadeira posição no mundo não teme. Foi-nos
ensinado: “Vigiai e orai, para que não entreis em
tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.” (Mateus 26:36). Eu penso nessa verdade como: Religue-se com a sua presença e atenção ao
que vai construir no corpo.
Reabilitar é descobrir potenciais
Somos seres artísticos
por natureza. Viver pressupõe criar. Não deveríamos ficar abismados com os
nossos potenciais quando eles surgem. Nem tampouco deveríamos acreditar que
somos melhores do que os outros, pois se os outros não conseguiram algo
semelhante aos nossos feitos não é porque eles não tenham habilidade, e sim
porque ainda não descobriram o próprio potencial. Não faça comparações, elas só
nos trazem infelicidades. Somos seres
únicos, e cada um nasce com um potencial intransferível. Eu nasci com um dom,
enquanto você também tem o seu dom específico. Tudo nasce em nossa fonte de potência,
e o corpo o manifestará mais cedo ou mais tarde. Isso significa tanto para a
saúde quanto para a doença. Nada vem de fora. Doença e saúde são estados do
corpo. Quando estou inteiro estou saudável. Quando estou partido estou doente.
Atualmente conhecemos
muitos métodos de tratar as doenças. Ao mesmo tempo, nunca tivemos tantas
pessoas doentes como agora. Portanto, eu prefiro dizer que a melhor maneira de
estarmos saudáveis é nos reinventarmos a cada dia. Não podemos pensar que
estamos seguros em nossos hábitos. Temos de aceitar o fluxo da mudança, e
aprender a lidar com as incertezas, sem alimentar o medo.
A manifestação no
corpo de uma deficiência ou mal-estar é um sinal de que algo não vai bem.
Bem-estar ou mal-estar significa literalmente estar bem ou mal no corpo. Quando
estamos nos sentindo mal em uma determinada situação, isso significa que
estamos mais predispostos à criação de uma doença. O que você pode fazer para
mudar a sua situação agora? Apresento aqui três dicas preciosas:
1.
Aceite sua
própria presença. Você é um ser divino. Por isso, deve se sentir bem com você
mesmo.
2.
Não recuse
ser quem você é. Se você não está satisfeito com a sua situação mude o rumo de
sua história. Você é o autor de si mesmo. Reabilite-se!
3.
Não se
compare a ninguém. Nunca será mais, nem menos, você é você.
Ao atender pessoas acima de
sessenta anos, não perco esse foco. Todo processo de reabilitação começa e
termina no indivíduo (aquele que não se divide). Não existem regras delimitadas
para o bem-estar do ser humano. O que é bom para um pode não ser para o outro.
Precisamos compreender a nossa obra corporal. Todavia, temos um mesmo sentido
na vida que é ser feliz.
Reabilitar é costurar
Ao estarmos inteiros estaremos
saudáveis. Existe uma história sufi que nos mostra bem isso:
O grande sufi Farid
recebeu a visita do rei. Ele havia levado um presente para o místico, uma bela
tesoura de ouro e diamantes. Farid olhou, pegou-a e a devolveu ao rei. Ele
disse que agradecia muito o presente, mas não tinha o que fazer com ele. Seria
melhor se o rei tivesse trazido uma agulha de presente. Ele explicou que não
precisava de uma tesoura, porque ela só serve para cortar e separar as coisas.
Uma agulha, por outro lado, junta as coisas. Como mestre, todos os ensinamentos
dele eram baseados no amor: como colocar as coisas juntas, como atingir a
comunhão. Assim, ele disse ao rei que ficaria muito grato se da próxima vez que
viesse visitá-lo trouxesse uma agulha, pois assim poderia usá-la para unir as
pessoas, e não separá-las.
Todos nós precisamos
de agulhas para unir o que foi separado. Restituir a palavra aos mudos, dar
movimento ao corpo aos que perderam a flexibilidade, devolver o som àqueles que
não escutam mais, restabelecer a visão aos que não podem enxergar. A vida é um
milagre. As pessoas estão doentes porque estão desunidas, principalmente delas
mesmas. Se pensarmos na palavra saúde, veremos que só somos saudáveis quando
nada falta. Saúde e integridade andam de mãos dadas.
Nesse sentido, no
processo de reabilitação do corpo sempre sigo estas palavras de Rainer Maria
Rilke:
“O
corpo humano só se torna um todo se surgir de uma ação conjunta (interna ou
externa), na qual são empregados todos os seus membros e suas forças, assim
também, para ele, partes de corpos diversos, que por uma necessidade interna se
prendem uns aos outros, podem ordenar-se como se fossem um só organismo. Uma
mão que se entrega a um outro ombro ou a outra coxa não pertence mais ao corpo
do qual ela veio: dela e do objeto, que ela toca ou agarra, surge uma nova
coisa, uma coisa que não tem mais nome e que a ninguém pertence.”
Enquanto valorizarmos
a tecnologia em detrimento do humano, continuaremos a assistir ao teatro da
crueldade, com suas personagens incapazes e inábeis no exercício do próprio
papel. Devemos religar os conhecimentos,
ao invés de se acreditar que somente uma pílula pode trazer a redenção ao
corpo. Toda possibilidade está dentro do sujeito e não fora dele. Portanto,
qualquer forma de tratamento só trará benefícios se o sujeito estiver pronto a
aceitá-lo. Ninguém pode fazer para o outro, mas sim facilitar o seu potencial
inato, no qual está latente. Ninguém se liberta sozinho. Enfim, é preciso comunhão entre quem cuida e quem é
cuidado, até os dois se tornarem Um. Por isso, percebo que para alcançar
resultados felizes em qualquer processo de reabilitação devemos atuar como os
artistas.