
A memória é uma capacidade psíquica complexa. Por um lado, depende da natureza da informação sensorial. Por outro, como a informação é percebida pelo cérebro.
O cérebro ao elaborar a informação sensorial não a traduz como ela é. A informação deixa de ser como ela é para fazer parte daquilo que o cérebro é em sua totalidade. Ou seja, de como ele se organizou ao longo do tempo. Nessa perspectiva, sem dúvida, somos as nossas sinapses, e é nelas que contêm a nossa história autobiográfica, recheada de crenças, conceitos, expectativas, e assim por diante.
Se eu perguntar qual a cor dos olhos de sua mãe, será fácil dizer a cor, mas não tão fácil definir com exatidão como os olhos dela são. Lembramos, mas mudamos a todo instante aquilo que evocamos da memória. Por isso, somos seres altamente reinventivos. Nossas experiências anteriores nos conduzem a maneiras de perceber o mundo aqui e agora. A percepção presente precisa fazer comparações com o formato básico de uma lembrança. Por isso, uma memória não é um arquivo morto ou um armazém de lembranças. A memória nos auxilia a montar novas cenas. Quem faz isso é uma pequena área do cérebro chamada hipocampo. Ele tem esse nome porque sua estrutura se parece com um cavalo marinho, o que, aliás, nunca achei assim tão parecido.
Segundo pesquisas neurocientíficas é o hipocampo que monta as memórias de curta-prazo em memórias de longo-prazo, mantidas em diferentes regiões do neocórtex (área mais superficial do cérebro). Literalmente o hipocampo transforma o desconhecido em conhecido.
Quando o hipocampo fica comprometido por uma doença degenerativa, como no caso da doença de Alzheimer, a pessoa não consegue formar novas memórias. É por isso que essas pessoas conseguem se lembrar de antigas memórias (mantidas no neocórtex), mas não conseguem lembrar daquilo que comeram no almoço. E não é só isso. Dependendo do dano provocado no hipocampo as próprias memórias antigas começam a ficar comprometidas. Porque nossas lembranças precisam de alimentação contínua, caso contrário elas se dissolvem, se tornando outras memórias. Ou seja, elas são reinventadas por inverdades.
Se você não consegue dizer qual a cor e os detalhes dos olhos de sua mãe, é só ir até a cozinha e pedir a ela para olhar para você. Acenda a luz e veja o rosto de sua mãe mais de perto. Pronto, você reforçou sua memória com a imagem atual. Agora ela possui mais detalhes que antes.
Talvez você possa fazer isso, porque sua mãe está na cozinha. No meu caso isso seria impossível, pois a minha mãe já faleceu há mais de dez anos. A única lembrança mais marcante que tenho dela, com relação aos seus olhos, é a permanência solitária de seus óculos na estante da sala, logo após o funeral. Essa imagem ficou indelével em mim. Ela nunca retirava seus óculos, a não ser quando fotografada.
Nunca poderei saber com exatidão a cor dos olhos de minha mãe. Posso dizer apenas que eram pretos. Não, acho que eles eram castanhos escuros. Definitivamente não sei.
Passei tantos anos ao lado dela sem nunca reparar seus olhos. Talvez, isso não seja verdadeiro. Porventura, a minha memória esteja agora pregando peças em mim. Como não tenho novas sensações para reforçar as minhas redes neurais, a fim de preservar uma lembrança, a imagem de minha mãe se desvaneceu no meu tempo. A imagem dela desaparece aos poucos de minha história pessoal, para somente se tornar um conceito fugaz.
Ontem conversava com um paciente cujo marido está demenciando a passos largos. Eles vivem juntos há mais de cinquenta anos. Um relacionamento homossexual bem-sucedido. Ele me disse que a maior saudade que tinha de seu companheiro era de suas conversas. Ele me relatou emocionado:
De fato nunca podemos nos recuperar de uma lembrança perdida. A maior tristeza de uma doença degenerativa cerebral é que ela devora a identidade da pessoa em vida. A demência deste homem devastou sua autobiografia, retirando do parceiro a capacidade de reconhecer (conhecer de novo) todas as situações que juntos foram vivenciadas. O que significa uma lembrança vivenciada por duas pessoas em que somente um pode evocá-la? O que permanece na memória de um sem o consentimento do outro é letra morta, é navio sem rumo, escuridão sem promessas de luz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário