24 de janeiro de 2011

Podemos perder a poesia?

Semana passada uma pessoa me disse: "Você está perdendo a sua poesia. Está ficando racional." Concordo que eu tenho estado mais racional ultimamente. Um período pelo qual atravesso, apenas isso. Para mim, é importante estar em fluxo. Não me considero um ser dividido. Se sou um indivíduo, não posso me dividir. Embora eu possa estar mais num polo do que em outro, em um determinado momento. Sempre procuro respeitar minhas flutuações.

Eu não sei se poderia perder algo que está incrustado na minha carne. Já nasci assim. Já sofri tanto por ser assim. Certa vez quis desistir de ser quem eu era, hoje sei que foi o máximo ser quem de fato eu era. Ser sensível é também uma possibilidade. Aprendi que posso brincar comigo mesmo, em minhas múltiplas formas de ser. É importante saber que posso ser mais - ou menos - do que eu acredito ser. Transitar pela profundidade de minha história, vendo a minha vida como num cinema. Criar e recriar cenas. Se posso ser o autor de meu script, porque então não brincar com a realidade.

Hoje, tive de confrontar uma senhora com um ataque histérico. Não aceita que a sua vida seja da maneira que ela se apresenta. Ela se acha merecedora do melhor. "Eu sempre fui uma boa pessoa. Não mereço sofrer". Eu disse: "Se você está sofrendo, e se realmente é uma boa pessoa como diz, pode ter a certeza de que o que está acontecendo agora nada mais é do que uma oportunidade". O sofrimento daqueles de boa vontade é uma chance de transitar por lugares nunca dantes percorridos.

Posso transitar em minha própria personalidade e ser diferente daquilo que sempre pensei ser. Nunca sabemos ao certo o que somos, porque somos muitos. Nosso ego nos prega peças. Achamos que somos uma coisa e de repente estamos tendo atitudes irreconhecíveis. O ego é como as bonecas russas, uma dentro da outra. Ele é feito por camadas. Cada vez que descascamos uma, achamos que chegamos onde sempre achávamos que seria o melhor lugar. Daí a vida, como numa roleta, nos coloca novamente a girar, e ter novas perspectivas e ações. Não podemos nos esquecer que sempre temos a chance de escolher o que queremos seguir.

Falando novamente sobre a senhora que se justificava com autocomiseração, ela dizia que não queria depender de ninguém, queria saldar seus compromissos. Nenhuma dor a retiraria do caminho dos desejos ainda por se realizarem. Quando ela dizia isso, a sua dor nas costas pioravam mais e mais, e ela chorava. Disse para que ela fosse verdadeira e não sentisse autopiedade. Tudo pode em nosso caminho, menos perder a consciência de nosso sentir. Para muitos, nessas horas, o melhor é um analgésico forte, um inibidor do sistema nervoso. Para retirar a dor de cena, sem que se resolva o problema mais profundo. Pode anestesiar, mas a dor virá mais tarde, quando o ego se mostrar mais forte do que a própria essência. Não podemos sentir o pior se formos honestos com nós mesmos. É preciso descascar a camada do ego que nos impede de seguir.

Amo ser sensível, porém como terapeuta, às vezes, tenho de ser inflexível para ajudar pessoas que não querem enfrentar suas sombras. Outro dia atendia a um padre que me revelou algo interessante. Ele me disse que o sofrimento ainda é uma escada que Deus coloca em nossas vidas para chegarmos próximo a Ele. Não é que tenhamos de sofrer para estarmos mais próximos de Deus, o problema é que queremos ter tudo de bom sem se dedicar para obter o melhor. Achamos ainda que bom é só ter prazer. Prazer é somente uma parte do processo de crescimento, a dor é o outro. Se somos indivíduos, temos as duas extremidades. O melhor, como os budistas acreditam, é seguir o caminho do meio. Saber que somos tudo. Quando sabemos disso, as cortinas caem para se revelar o verdadeiro, sem hipocrisias, sem barganhas.

Perder a poesia seria como estar amputado de uma parte de mim. A minha poesia é como um fluxo de transformação e criação. Não posso perder aquilo que me faz ser o que sou, fonte de criação de mim mesmo. Posso desviar o olhar, mas a beleza continua a brilhar; posso me fechar, mas o vento continua a soprar; posso abrir o guarda-chuva, mas a água não para de cair. A Terra continua a girar, independentemente de eu estar parado. Sou simplesmente.

Não tenho dúvida do que sinto nos dias de sol, ou nas noites estreladas. Tudo ao meu redor me faz ser o que necessito. Não estou separado de mim mesmo. Com os ouvidos repletos de música caminho com o coração. Sentir é difícil em algumas circunstâncias, mas decidi não abandonar o que me toca, mesmo que me faça sofrer. Pois a poesia também é sofrimento. Todos os dias sofro com aqueles que sofrem, e agradeço por isso. Tenho a possibilidade de mudar a perspectiva de uma história ainda mal contada. A compaixão é o sentimento mais legítimo e essencial para qualquer processo de cura. Por isso choro e deixo que o outro me veja, e quando o meu partícipe (paciente) não nota que estou chorando, me aproximo da luz para que ele possa me encontrar. Estar vulnerável e sensível ao sofrimento do outro é uma grande experiência. Só há cura quando o sofrimento é compartilhado. Vivo isso há vinte e cinco anos, e não tenho mais dúvidas de que o milagre está na entrega (Seja feita a Vossa vontade e não a minha). O sofrer me faz humano e cada vez mais poeta de minha vereda.

Transformo o sofrimento do outro em poesia, força de criação. O pior seria ser como as rochas. Elas são indiferentes. Prefiro, no entanto, ser como as águas. Um ímpeto de potência a mudar o que se paralisa. Não sou um ser estacionado, portanto sei que é necessário experimentar outros cenários. Ser aquilo que nunca fui.

A poesia é inerente a todos nós. Muitos não tiveram a oportunidade de experimentá-la na carne. Acreditam que ela é somente para os poetas, o que não é verdadeiro. Poesia é "poïesis", uma palavra grega - ποιέω - que significa "fazer", "criar". Sem a reinvenção de nós mesmos estaríamos mortos. É necessário ser diferente para saber quem de fato se é. Acostumamo-nos com a ideia de quem somos. Nem sempre sabemos que podemos ir além de nós mesmos, ser também o outro que se mostra frágil. Esconder a nossa fragilidade não é um ato de firmeza. Ser forte é ter potência criativa, poesia em curso.

2 comentários:

  1. Caro Pedro, fui apresentada a você por uma amiga que me enviou seus textos há menos de 10 dias e me senti gratificada pelo que li e senti.Sou terapeuta transpessoal em Salvador e nessa caminhada para o auto conhecimento e aceitação de quem se é, busco interagir com os afins que confluem para uma consciencia similar. Achei-o sensível, primoroso, inteligente,e parabenizo pelo seu trabalho e dedicação ao que se propõe. Um grande abraço, Claudia
    visite meu blog:
    www.claudia-aguiar.blogspot.com

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  2. maravilhoso! pedro, posso te perguntar de onde vem sua certeza ,ou experiencia pessoal sobre ao que disse a sua paciente "Eu sempre fui uma boa pessoa. Não mereço sofrer". Eu disse: "Se você está sofrendo, e se realmente é uma boa pessoa como diz, pode ter a certeza de que o que está acontecendo agora nada mais é do que uma oportunidade". O sofrimento daqueles de boa vontade é uma chance de transitar por lugares nunca dantes percorridos."sou sua ex aluna

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