Beijo na boca é um ato íntimo,
requer profundidade, interiorização. Semana passada, ao terminar uma sessão
terapêutica, a paciente de quase 80 anos de idade, ameaçou em me dar um beijo.
Ela me ameaçou literalmente: “Cuidado que eu te dou um beijo à força”. Não
gostei. Um beijo não pode vir com ameaças. Ele brota pela cumplicidade.
Compreendo o estado depressivo e a
carência afetiva. Ela perdeu todos da família, não tem ninguém. Mora só, com
uma cuidadora. A família evaporou, e ela sobreviveu a todos. Ao ficarmos muito mais
velhos, temos de aprender na marra a nos desapegar de tudo e de todos. Por
isso, é sensato começar o desapego bem antes, ainda na juventude. Essa atitude
ainda não é vista com bons olhos, também não é pra menos, num mundo tão consumista,
no qual tudo pode ser comprado, não é de se estranhar que fica cada vez mais
complicado o deixar ir.
O espetáculo do antienvelhecimento
e da juventude eterna sob o lema "eu não sou velho porque não me sinto
assim" só traz sofrimento àqueles que acreditam em suas fantasias
narcísicas. Um dia a cortina fecha. Se não soubermos ser simples não haverá
aplausos. Pelo contrário, poderemos ser vaiados no final do ato.
Não podemos ir contra o fluxo da natureza.
Quando insistimos em ir contra (controle) a nossa natureza nos tornamos
incoerentes, irracionais e utópicos. Passamos a acreditar no impossível.
Obviamente, existem muitos fenômenos a nos surpreender, mas muitos não podem
ser diferentes, como envelhecer e morrer.
Nada pode nos ferir mais do que a
expectativa. Não adianta querer o que não se pode ter. Temos de ser humildes e
aceitar tais fatos. Só temos o que se apresenta para nós. Podemos nos dedicar,
mas isso não significa que conseguiremos tudo o que queremos. É preciso saber
apagar algumas linhas do caderno de nossos sonhos. Portanto, hoje vivemos o
lema de que aquilo que se deseja é o que se pode ter. Confunde-se desejo com direito. Nem tudo o que
eu desejo é o mais importante para mim. Precisamos de poucas coisas, mas
desejamos muito. A mídia com suas ideologias nos fazem acreditar assim. Ela
preconiza que nossa felicidade não deve ter limite. Isso é um perigo.
Temos de nos proteger de nós
mesmos, porque também somos o nosso maior inimigo. A única saída ainda é nos
conhecer bem, delinear a fronteira onde terminamos e onde o outro começa. Daí
surge a nossa ética. É fácil falar sobre ética quando não há ninguém envolvido.
Ela nasce na relação interpessoal. No momento em que o outro lhe pede algo, ou
convida para estar junto. Se não soubermos quem somos podemos nos perder no
desejo alheio.
A mulher que me ameaçou não estava
comigo, somente com ela mesma. Existia um ar de arrogância mesclado com
tristeza. Ela precisava confirmar a crença de que ela ainda é sedutora,
colecionadora de desejos. Ela queria justificar o seu investimento em cirurgias
plásticas, consolidando a crença de que a aparência é melhor do que o conteúdo.
Há anos ela está perdida na
jornada da vida. Não se pode ajudar a quem não olha para o outro. Isso foi dito
por mim, e ela tentou se justificar: "Pensei que você pudesse me
ajudar". “Eu posso. Mas, você também precisa me ver”, respondi.
Tenho a minha estrutura e meus
conceitos. Não quis magoá-la, pois naquela situação qualquer expressão ou
palavra poderia justificar a angústia de sua solidão. Mas, não poderia fingir,
arrumando um antídoto para a incapacidade dela. Cada um de nós constrói o
corpo, a própria história. Ninguém pode nos ajudar senão nós mesmos. Ainda
assim acreditamos em remédios e terapeutas como antídotos para todos os males
da vida. Isso não é verdadeiro. O remédio nos auxilia, o terapeuta nos
facilita, mas somos nós que devemos acender a luz para prosseguir. Só assim
podemos dar novos passos.

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