16 de abril de 2012

O Beijo


Beijo na boca é um ato íntimo, requer profundidade, interiorização. Semana passada, ao terminar uma sessão terapêutica, a paciente de quase 80 anos de idade, ameaçou em me dar um beijo. Ela me ameaçou literalmente: “Cuidado que eu te dou um beijo à força”. Não gostei. Um beijo não pode vir com ameaças. Ele brota pela cumplicidade.

Compreendo o estado depressivo e a carência afetiva. Ela perdeu todos da família, não tem ninguém. Mora só, com uma cuidadora. A família evaporou, e ela sobreviveu a todos. Ao ficarmos muito mais velhos, temos de aprender na marra a nos desapegar de tudo e de todos. Por isso, é sensato começar o desapego bem antes, ainda na juventude. Essa atitude ainda não é vista com bons olhos, também não é pra menos, num mundo tão consumista, no qual tudo pode ser comprado, não é de se estranhar que fica cada vez mais complicado o deixar ir.

O espetáculo do antienvelhecimento e da juventude eterna sob o lema "eu não sou velho porque não me sinto assim" só traz sofrimento àqueles que acreditam em suas fantasias narcísicas. Um dia a cortina fecha. Se não soubermos ser simples não haverá aplausos. Pelo contrário, poderemos ser vaiados no final do ato.

Não podemos ir contra o fluxo da natureza. Quando insistimos em ir contra (controle) a nossa natureza nos tornamos incoerentes, irracionais e utópicos. Passamos a acreditar no impossível. Obviamente, existem muitos fenômenos a nos surpreender, mas muitos não podem ser diferentes, como envelhecer e morrer.

Nada pode nos ferir mais do que a expectativa. Não adianta querer o que não se pode ter. Temos de ser humildes e aceitar tais fatos. Só temos o que se apresenta para nós. Podemos nos dedicar, mas isso não significa que conseguiremos tudo o que queremos. É preciso saber apagar algumas linhas do caderno de nossos sonhos. Portanto, hoje vivemos o lema de que aquilo que se deseja é o que se pode ter.  Confunde-se desejo com direito. Nem tudo o que eu desejo é o mais importante para mim. Precisamos de poucas coisas, mas desejamos muito. A mídia com suas ideologias nos fazem acreditar assim. Ela preconiza que nossa felicidade não deve ter limite. Isso é um perigo.

Temos de nos proteger de nós mesmos, porque também somos o nosso maior inimigo. A única saída ainda é nos conhecer bem, delinear a fronteira onde terminamos e onde o outro começa. Daí surge a nossa ética. É fácil falar sobre ética quando não há ninguém envolvido. Ela nasce na relação interpessoal. No momento em que o outro lhe pede algo, ou convida para estar junto. Se não soubermos quem somos podemos nos perder no desejo alheio.

A mulher que me ameaçou não estava comigo, somente com ela mesma. Existia um ar de arrogância mesclado com tristeza. Ela precisava confirmar a crença de que ela ainda é sedutora, colecionadora de desejos. Ela queria justificar o seu investimento em cirurgias plásticas, consolidando a crença de que a aparência é melhor do que o conteúdo.

Há anos ela está perdida na jornada da vida. Não se pode ajudar a quem não olha para o outro. Isso foi dito por mim, e ela tentou se justificar: "Pensei que você pudesse me ajudar". “Eu posso. Mas, você também precisa me ver”, respondi.

Tenho a minha estrutura e meus conceitos. Não quis magoá-la, pois naquela situação qualquer expressão ou palavra poderia justificar a angústia de sua solidão. Mas, não poderia fingir, arrumando um antídoto para a incapacidade dela. Cada um de nós constrói o corpo, a própria história. Ninguém pode nos ajudar senão nós mesmos. Ainda assim acreditamos em remédios e terapeutas como antídotos para todos os males da vida. Isso não é verdadeiro. O remédio nos auxilia, o terapeuta nos facilita, mas somos nós que devemos acender a luz para prosseguir. Só assim podemos dar novos passos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário