29 de abril de 2010

Não somos os mesmos de antes

Por que temos tanta dificuldade em perceber o nosso envelhecimento? Podemos até acreditar que somos sempre os mesmos, mas isso não é verdadeiro. Nossa aparência muda diariamente, e não é o tempo que faz isso, e sim os movimentos biológicos em nosso organismo. E, de repente, somos acometidos pelo olhar lúcido do outro para a nossa mudança. Mesmo que queiramos crer que não mudamos, o estranho acaba por nos surpreender com seus comentários espontâneos. O grande problema é o que o outro vê em nós, o que não conseguimos enxergar. O médico americano Oliver W. Holmes dizia: “Uma pessoa fica sempre sobressaltada quando a chamam de velha pela primeira vez”. Muitas vezes, nem mesmo refletimos sobre isso, acatamos como ofensa. Então, se não quisermos nos sentir assim, devemos prestar mais atenção ao processo de envelhecimento. Ficar mais atento nos previne do susto.

Ontem estive no escritório de contabilidade de um amigo para resolver questões sobre o meu imposto de renda. Ao chegar, a secretária me perguntou com quem eu gostaria de falar. Eu disse, e ela pegou o telefone para ligar para outra pessoa. Então ela disse: “Tem um senhor aqui que quer falar com ele”. No momento em que ela disse a palavra “senhor” aquela expressão ridícula acendeu em minha mente: “o Senhor está no céu”. Eu reconheço bem a minha mudança, mas mesmo assim o inconsciente sorrateiramente detonou essa expressão para a minha mente consciente.

Nos últimos tempos venho escutando isso com mais regularidade. Costumo brincar com os meus alunos que se eles querem ser chamados de doutor, terão de esperar os anos se consumarem. Hoje, após os meus cabelos ficarem brancos, passei a ser chamado de doutor com muito mais frequência. No Brasil, cabelo branco e carro novo parecem ser indicativos de doutoramento. Pura bobagem.

Saindo do escritório, após ter recebido a notícia de que não precisava saldar dívidas com o Leão, pois já tinha pagado durante o ano passado mais do que um cidadão deveria pagar, questionei-me: Isso é bom ou ruim? Por um lado, é bom não ter de desembolsar mais dinheiro no momento. Por outro, ficava explícito que eu havia ganhado menos do que nos outros anos. Enquanto eu estava envolvido em devaneios econômicos, o elevador parou e uma mulher entrou vestida com uma blusa branca com estrasses brilhosos e calças jeans de cintura baixa. Ela não deixava de me olhar, e aí pensei: “será que eu a conheço e não me lembro?”. Fiquei quieto olhando para baixo. Interessante que dentro de elevadores, devido a proximidade dos corpos, costumamos olhar para o chão a fim de não nos sentirmos constrangidos com os olhares de estranhos. Tudo para preservar o nosso espaço.

Ela não conseguiu se segurar e invadiu-me perguntando à queima roupa: “Eu te conheço de algum lugar, você está se lembrando de mim?”. Esse tipo de pergunta nos força a ter de perscrutar os escombros de nossas memórias. Eu já estava farto de tanta conversa sobre dinheiro e ainda tive de vasculhar minha mente em busca daquela mulher. De fato, ela me parecia ser conhecida, mas não conseguia me lembrar. Eu estava demente para o passado distante. Ela tentou fazer associações de fatos para ver se me identificava, e eu era levado para aqueles lugares que não gostamos ir. O interesse dela era tanto que cheguei a pensar, enquanto fazia a ficha física dela, se eu já havia estado com ela intimamente e não me lembrava. Não queria pensar nisso, mas a mente nos prega peças. Não sabia o que fizera no passado que agora o presente me cobrava restituição. Do mesmo modo que eu conseguira uma restituição de imposto, apenas R$ 2,31, eu também estava sendo inquirido a restituir lembranças. Passei o pente fino na fisionomia dela e nada. Estava me sentindo mais velho do que antes quando a secretária me chamou de senhor. Também não queria acreditar que eu estava tão velho como ela aparentava. Porém, não tinha muito jeito, eu já estava classificado como o velho daquela situação. Daí minhas ilusões cognitivas passarem a tentar uma justificativa: “Você está somente na casa dos quarenta, ainda é jovem... para alguns”. “Alguns?!”. “Sim, jovem para os velhos com os quais você convive diariamente”. “Então, quem eu era, ou quem eu sou, jovem ou velho?”. A situação já estava ficando estressante. Era muito para mim. Fui me afastando dela, dizendo ter um compromisso. Entrei no meu carro, e logo coloquei o CD do Black Eye Peas. Pronto, já me sentia um pouco mais jovem novamente.

Um comentário:

  1. Querido você é um velho sábio, sabe disso, mas entrou na sintonia monótona da adolecência inquieta. Daí não deu tempo para se perguntar: Quantos anos terá meu Espirito, por eu obter com tanta desenvoltura discernimentos para coisas sem a minima importância? Já que a cronologia terrena pouco importa, na sequência da sua evolução,é um velho sábio.

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