Cada vez mais compreendo que é preciso transgredir as regras de um processo terapêutico. Na faculdade aprendemos o que não podemos fazer, ou posturas – supostamente éticas – que devemos adotar. Mas, em minha percepção, as regras são feitas para serem transgredidas. Ao trabalharmos com gente sabemos que não pode haver regra. Somos um hoje e outro amanhã. Nosso fluxo de variação aumenta como as ondas do mar em dias de ressaca e diminui em dias de calmaria. Ser gente é ser desconhecido para nós mesmos. Um gesto transforma tudo. Portanto, não há um jeito de se fazer, existe apenas um jeito de seguir, reconhecer o que nos toca profundamente, e estar ao lado do outro.
Não acredito que uma pessoa mais velha volte a ser criança. Seria ingenuidade de minha parte acreditar nisso. Porém, sei que as pessoas ao estarem doentes, independentemente da idade cronológica, regridem a um estado de carência existencial. Essa carência precisa ser sanada, os vazios necessitam de preenchimento. Não sabemos ao certo como, pois o que o outro sente só ele mesmo pode sentir. Mesmo assim, a pessoa deve retomar ao seu fluxo de vida, e a carência é um impedimento. Ela abre portas para interpretações errôneas do tipo: "Não sou boa o suficiente. Por isso sofro." É tácito haver sensibilidade por parte de quem trata. Não sabemos o que pode dar certo, o que modificará aquela pessoa, o importante é tentar, usar todos os recursos.
Aprendi com o tempo que o melhor é ser simples. As pessoas necessitam do básico. Enquanto estivermos atentos somente às técnicas nos dispersamos do mais elementar. É na simplicidade do gesto que alcançamos o outro, e ajudamos a ele se locomover, passar de uma etapa a outra.
Hoje consegui estar junto ao outro. Sinto-me regozijado ao alcançar um resultado de melhora de uma dor ou dificuldade por um simples gesto. Aprendi isso ao atender uma senhora de 80 anos, ela se curou de uma dor crônica porque me alimentava todas as semanas com bolos que ela fazia para mim. Ela precisava alimentar alguém para ter um significado, e eu compreendi isso. O simples deveria ser levado em consideração nas aulas universitárias. Eu ensino aos meus alunos que o básico é o que faz a diferença. Mas, eles ainda estão deslumbrados com as últimas pesquisas e valorizam o que é mais difícil, e querem conhecer as técnicas para obter o controle do processo. Obviamente precisamos conhecer o complexo para chegar ao simples. Conhecer o simples não é possível pela razão, mas pelo coração. É como contemplar uma flor de orquídea crescer, ou a luz da lua em noites de inverno, e se emocionar, sem questionar o que se sente.
Hoje, em um de meus atendimentos, uma mulher de 95 anos de idade estava com frio e precisava se vestir com roupa mais quente. Porém, ela não conseguiria fazer sozinha. Sua filha não estava em casa, só chegaria mais tarde. Eu me prontifiquei a ajudá-la. Procurei em seu armário algo mais quente, como meias e blusas de lã. Foi difícil encontrar, mas insisti e consegui. Ela estava desconcertada por eu mexer em seu armário. Disse para ela ficar tranquila, pois isso fazia parte de meu trabalho. Sem dúvida, isso não faz parte das inumeráveis técnicas que aprendi como sendo terapêuticas. Isso, na verdade, é algo simples e se chama solidariedade. Algo que nos move além de nós mesmos, sem que saibamos o porquê de estarmos fazendo. Ela não me pediu, mas ao estar atento à necessidade dela pude descobrir que um pouco é mais do que muito.
Coloquei sua meia de lã preta, a blusa verde, e pus um copo d’água na mesa de cabeceira. Ajudei a ela se deitar na cama, e a cobrir com um cobertor quadriculado. Liguei o aquecedor antigo, com receio de que ele pudesse dar um curto, e a deixei quente.
O frio se dissipara completamente tanto em mim quanto nela.
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