5 de fevereiro de 2013

Olhos de Matilde





Uma mulher distante, sem ter nada para dizer. O olhar não cessava de olhar o que não se via. Não fechava os olhos para não deixar de ver o nada. Olhos abertos, estacionados no além de si mesmo, inexpressivos. Sabemos que o olhar vem de dentro, ele é somente uma figuração exterior aos olhos alheios. Ela não estava ali presente. Não podia estar. Quantas vezes nos afastamos de nós mesmos a fim de encontrar um refúgio? É factível ocorrer a todos nós. Podemos nos afastar de nós mesmos com habilidade, basta não ter mais sentido na vida. O sentido é o que nos dá sentido.

Embora possamos nos distanciar, também sabemos como retornar, basta o estímulo do mundo nos tocar de alguma maneira. Somos tocados pelo olhar, porque há um olhar de dentro. Ela, ao contrário, recusava a comunicação com o que a circundava. Ela possuía um corpo pesado, deixando suas pernas caídas com se não existissem, como se ela não quisesse procurar. Nada nela tinha existência, senão o corpo visível aos olhos alheios. A cabeça não se mexia para não interferir no olhar vago. Um peso morto. Ela havia se abandonado há anos. Sem dúvida, pensei o que podia ter acontecido para ela estar naquele estado. Sei que uma história se desnuda pelo corpo, mas sei também que a palavra é o que materializa a história coerente.

Há anos busco levar às pessoas algo que possa fazer sentido para as suas vidas. Sem direção não há movimento. Porém, isso nem sempre é possível. Muitas vezes, a história de uma pessoa foi marcada por agressões do mundo. Quando somos agredidos o corpo encolhe, se arma pela couraça de proteção, e, assim, deixa de querer, se embriagando de insensibilidade.

Perguntei a ela se a satisfação não existia mais. Ela disse em tom enfadonho: "Eu preciso morrer". Sem pensar eu retruquei: "Quem não quer? Viver é difícil. Não tenho dúvida". Ela não disse mais nada. Voltou a olhar me atravessando mais uma vez.

Para um problema ser resolvido é preciso saber o "como", menos importante o "por quê". É o método, a técnica, as nuances corporais que determinarão o retorno. Porém, antes, é preciso acessar a linguagem subjetiva, o "como" sensibilizar o outro. Essa é a tarefa mais árdua. Sem conhecer um pouco da história não sabemos como conduzir, é como um barco flutuando nas brumas, sem acesso ao que se vê logo à frente do nariz.

Tentei mostrá-la que morrer não era uma opção no momento. Não temos como escolher como morrer. O que ela queria verdadeiramente era se transformar. Ninguém pode viver deitado numa cama sem interesse por nada. Ela só me olhava, sem coerência em seus olhos claros e tomados por nuvens de catarata.

Então, tentei a estimulação tátil. É uma técnica eficaz através da qual é possível trazer a pessoa de volta, porque o sentido tátil é o que nos dá contorno. Precisamos reconhecer as nossas fronteiras corporais, nossos limites, sem os quais não podemos viver a vida, só sobreviver.

Não tive nenhuma resposta, a não ser um melhor movimento do corpo dela. No fim da sessão, ela já conseguia se levantar e se deitar sozinha, sem nenhuma ajuda. Eu tentei conduzi-la, mas ela recusou o auxílio. Fez a sua parte. Todavia, eu não pude me sentir ali, ela não permitia. Eu continuei do lado de fora, ela não me convidou a entrar em seu mundo. Eu compreendi que ela havia perdido a chave da porta de entrada.

Tentarei ajudá-la a encontrar essa chave, mesmo de fora. Este foi apenas o nosso primeiro encontro.

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