A vida é polaridade. Somos as
duas faces da mesma moeda. Assim como os sons e as cores se interpenetram para
formar a cena, a abstração e concretude se fundem e se confundem em nosso ser. Navegamos
sem rumo. Sabemos que ninguém nasce munido de bússola. Devido aos nossos
limites nenhuma paisagem é completa. É por meio dessa incompletude que buscamos
a terra firme, sendo a incerteza prerrogativa da condição humana. Todavia, em
várias situações, somos convidados a olhar para nós mesmos como o personagem
principal dessa travessia nebulosa e dúbia. Se não aprendermos o que a vida
quer nos ensinar, seremos constantemente conduzidos às mesmas situações de
outrora. Mesmo velhos, podemos ser redirecionados à situações semelhantes de
nossa infância. Podemos repetir ciclicamente.
"E se um dia ou uma noite um
demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta
vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma
vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer
e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de
grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do
mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este
instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada
outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e
rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste
alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus
e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre
ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta
diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?"
pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias
de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que
essa última, eterna confirmação e chancela?"
Tudo se repete a fim de termos a
chance de vivenciar o polo mal elaborado. Aquilo que não foi integrado terá de
ser vivenciado novamente, incontáveis vezes, até unificarmos os polos
contrastantes. Estamos sendo direcionados à complementação a todo momento. É
como uma prova final do ano letivo, podemos ser aprovados ou não. Quem se reprova
terá uma nova chance, a vida se encarrega de dar a prova de recuperação. Temos
de recuperar a nossa integridade. Muitas vezes pela dor e sofrimento, porque
eles nos tornam mais cônscios de nossa realidade. Mesmo assim, não é fácil ver,
muito menos conhecer, porque as mentes modernas estão fracas ao silêncio e à
reflexão.
Somos condicionados a sobreviver,
mesmo assim inventamos histórias para nos sentirmos orgulhosos de nossas
conquistas perenes. Somos levados a acreditar que a dificuldade é o certo, nos
forjamos no calor do esforço. Porque vale a pena. Somos instigados a desejar o
impossível, porque obter o que não se tem nos torna o personagem principal de
nossa ode. Quem não consegue lograr um destino melhor acaba por se considerar
um fracasso.
Desde cedo ouvimos diversas
histórias inspiradoras de luta e conquista. Isso nos fascina porque estamos do
lado errado da paz. “Sem luta não há conquista”, brame o coro dos arrogantes
numa defesa egoica, que não se fundamentam na paz. A paz é a grande conquista. Não
temos mares para navegar senão fundamentados em nós mesmos. Somos o início e
fim de nossa própria jornada.
Somos educados a atingir o impossível,
e mesmo assim isso não nos garante nada, senão esforço e perda de energia
vital. O problema é que nos orgulhamos de nossos esforços como se a nossa
história pessoal fosse uma epopeia, porém a vida nos reserva um final como uma
simples elegia tosca. A vida ri de nossas pretensões. Eu rio de minhas
pretensões ao saber que sofrer faz parte de minhas ilusões imaturas. Tento aprender
com Fernando Pessoa quando ele escreve: “Saber
não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos”. Muitas vezes,
não é o adulto que sonha, mas a ilusão da criança que prevalece, forçando o adulto a
desejar o inimaginável.
Temos o nosso próprio destino e a
vida se encarrega de comandar o curso da história. Se estivermos atentos
aprenderemos que navegar por mares calmos é sempre a melhor escolha. Deslumbrar
uma história de paz nos trará grandes descobertas. Entretanto, isso só será
possível quando integrarmos o polo faltoso.
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