Quando criança tinha algo dentro de mim que me impulsionava a querer ajudar os mais velhos. Ajudava as velhas mulheres com suas sacas pesadas de compras da feira. Tinha uma vizinha, dona Iná, que me pedia para ir a rua comprar o feijão para o almoço, ou mesmo uma lâmpada para substituir a queimada para iluminar a cozinha na hora da janta. Largava a brincadeira para cumprir o meu dever. Para mim era um dever e não uma obrigação.
Era um impulso incompreendido, simplesmente gostava de fazer aquilo. Agora ao tentar me lembrar, a memória parece se dissipar como névoa em manhãs frias, e só consigo deslumbrar um sentimento, uma espécie de potência do cuidado, um tipo de necessidade inerente em querer contribuir com os outros. Não tem a ver com valores aprendidos, e sim um instinto a me mover.
Atualmente vejo que mudei pouco em relação ao meu comportamento de infância, só que agora consigo praticar o cuidado com ciência e mais consciência.
Entendo a minha irritação e inconformismo com a falta de cuidado dos profissionais que tratam pessoas doentes. De um modo geral, queremos que os outros enxerguem o que para nós é fácil de ser visto. Porém, não conseguimos enxergar todos os ângulos de uma situação vivida. O problema da falta de cuidado é ignorância. Aquilo que não temos dentro de nós não pode ser executado fora de nós. Contudo, acredito que com prática e atenção podemos mudar, criar em nós um coração puro e manter a força de nosso espírito.
Hoje fica claro para mim que é muito mais fácil ensinar uma técnica terapêutica, ou desvendar um diagnóstico de uma doença, mas a força do cuidado não se pode ensinar. É preciso sensibilização. Cuidar é diferente de tratar. Cuidar não é tratamento, não é realizar tarefas. Talvez não possa ser aprendido nas universidades. Cuidar é condição do sujeito, está na sua essência.
Ao atender a Sra. Alcinda ontem após o almoço, ela me disse que ainda não tinha comido, não estava com fome, mas precisava almoçar, porque estava se sentindo fraca. Sua pressão arterial estava baixa. Fui com ela até a mesa, ajudei-a a se sentar e fui esquentar o almoço. Ela estava sem vontade, mas eu disse que incrementaria o sabor da comida com um pouco mais de sal. Ela gostou da sugestão. Quando começou a comer, a fome veio na hora, e ela comeu tudo. Estava com dificuldade de mastigar, sua dentadura está solta, e machuca a gengiva se não tiver atenção. Eu tinha compromisso e estava atrasado. Ela se levantou para escovar a dentadura. Esperei-a terminar. Ela saiu do banheiro e a coloquei na cama. Cobri o seu corpo como a minha mãe fazia comigo quando era criança, cobria todo o corpo sem deixar uma parte sequer desprotegida. Aquele cobertor era o carinho de minha mãe, a proteção e segurança de que eu precisava. Fiz o mesmo comentário para a Sra. Alcinda. Ela sorriu e me agradeceu. Então nos despedimos e saí revigorado da casa dela.
Cuidamos melhor dos outros quando somos também cuidados. É um aprendizado silencioso. Nossas ações têm repercussões que não temos ideia de quanto influenciará outras pessoas. Isso eu chamo de cuidado sustentável. Um cuidado, o mínimo que seja, irá repercutir longe dali. Influenciará outras formas de cuidado.
Temos de exercitar a prática do cuidado. Tente uma pequena ação hoje, e depois me conte o que sentiu.
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