O incrível livro “UM, NENHUM E CEM MIL” de Luigi Pirandello é uma obra fascinante sobre a realidade do corpo. Moscarda, o personagem principal, ao descobrir, por intermédio da esposa, que o nariz dele era voltado para a direita, e que tal fato nunca tinha sido percebido por ele até então, dá início a uma série de especulações metafísicas sobre a sua identidade. Se ele se via de um modo diferente daquilo que os outros viam, quem ele de fato poderia ser? Se o outro dizia enxergar nele aspectos que nem mesmo ele poderia ver, significa que ele era outro para ele mesmo. Quem ele era para ele não seria a mesma pessoa para os outros? Sendo assim, vivia nele um desconhecido cujo outro se apropriava. A fascinante busca de Moscarda por si mesmo faz com que ele mude por completo sua maneira de pensar o mundo, os outros e a ele próprio.
Ao terminar o livro fiquei perplexo em saber o quanto temos tanta certeza de nada. Se não podemos nem mesmo compreender o que somos para nós, e que somos estranhos para os outros, porque os outros só podem nos ver com seus recursos perceptivos únicos, então como saber sobre nós?
Ao escrever o livro “Envelhecer” me deparei com essas questões. Cabia a mim o entendimento de que muitos buscam satisfazer crenças alheias sobre o que é um corpo velho. Corpo este que na verdade deveria seguir determinados padrões, como postura física e comportamento psicossocial. Queria descobrir como uma ideia poderia formar um corpo. Ao pesquisar durante dois anos, três mulheres acima de setenta anos de idade, cheguei à conclusão de que o nosso corpo é aquilo que acreditamos, mesmo que ele não seja na realidade (o que é realidade?). Não logramos saber ao certo o que ele é, pois vivemos mais na ideia de corpo do que no corpo propriamente dito. Acreditamos conhecer nossas fronteiras corporais, mas esta compreensão é viciada por padrões socioculturais e, principalmente, pela identidade fornecida pela alteridade. São os outros que nos dizem o que somos. E, pelo fato, de não termos tanta certeza de nosso espaço corporal, nós somos ludibriados pelos conceitos marcantes do que é bom ou ruim, do belo e feio, gordo e magro, e assim por diante, ditado pela mídia. O problema é situacional. Não temos e não teremos certeza alguma de nossos corpos, pois eles são mutáveis, e em cada expressão deverá existir um eco, um modo de compartilhamento. Dançamos inexoravelmente numa parceria de dúvida. O outro nos veem como eles podem, e nós nos vemos como queremos. Sendo assim, o corpo é um modelo virtual e nunca um corpo real. Ele é somente uma representação, cabendo a cada um descobrir suas múltiplas personalidades, ou seja, suas múltiplas faces, ritmos de expressão, a fim de estar em relação. Pois o que sabemos até agora é que estar à deriva, solitários e isolados, é o maior risco para a nossa sobrevivência.
Temos de ser humildes para saber que seremos quem somos para nós, mas o outro terá sempre meios para decidir como eles nos veem. Não adianta forçar uma visão, uma intenção, uma relação. Cada um decide como estar conosco, enquanto nós também fazemos opções de como estar com eles.
Cabe a cada um de nós não se perder de vista, porque isso seria fatal. Quando nos perdemos, passa a ser o outro quem dita regras daquilo que devemos ser para eles.
Deixar de ser para nós é a mais terrível escolha. Daí muitos não se respeitarem e, portanto, não respeitarem os outros.
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