Nunca podemos afirmar
que o momento da morte esteja próximo. Muito menos ter razão para ela. O que
sabemos é que estamos indo nessa direção. Por sermos humanos temos um lobo
cerebral (pré-frontal) mais evoluído do que de outras espécies. Há séculos nos
vangloriamos de nossa conquista antropogênica. Todavia, essa região cerebral
nos concede a capacidade de divagar no tempo do futuro, antecipar
acontecimentos que nunca surgirão, criar inseguranças sem relevâncias,
fantasiar sonhos improváveis. Somente os humanos criam imagens mentais de um
tempo não experimentado.
Hoje fui visitar uma
senhora no hospital. Ela está internada há duas semanas, à espera de cirurgia.
Ao abrir a porta do quarto avistei uma pessoa a cochilar com a boca aberta. O
sono parecia preencher o nada da expectativa. Assim que o meu corpo ficou
visível à percepção dela, a boca se fechou e seus olhos lacrimejaram. “Ganhei o
dia”, ela disse sorrindo. Senti a minha figura dar um complemento para aquele
quarto abarrotado de tédio. Aproximei-me e dei um abraço demorado, ela começou
a me contar sua peregrinação de exames e medicamentos. Nos seus olhos
amarelados avistei a dúvida entre o viver e o morrer. Ela não estava aflita,
mas não descartava a possibilidade de ter de partir. O corpo mirrado pelas duas
semanas de internação anunciava fraqueza, não desistência.
Tentei não pensar em
hipóteses de futuro, mas não deixei de procurar prenúncios da morte naquele
corpo. Ao mesmo tempo em que pensei estar elucubrando. Nada real. O meu cérebro
buscava explicações para o acontecimento.
No hospital qualquer
um é tratado como máquinas defeituosas. Não é habitat humano. Ela me relatou
que o médico disse que só estava aguardando a “peça” chegar para fazer a
cirurgia. Ele já havia encomendado o “artefato” para o “procedimento”. Eu sei
que é desse jeito porque é assim que os profissionais aprendem. A burocracia pode
matar mais do que qualquer infecção.
Ela estava na fila de
embarque, como numa estação de trem. Ela já havia comprado o bilhete, sem saber
como seria a viagem. Desconhecia o destino. Não podemos saber o que nos aguarda após o túnel. Mas, acredito ser importante construir uma imagem de satisfação. Disse
a ela para pensar no retorno ao lar, no aconchego de um lugar conhecido. Assim seria
mais fácil suportar aquele ambiente. Percebi os seus olhos brilharem, mesmo
distante de certezas.
A razão tem o seu
limite. Estava sentado à frente dela enquanto via um pacote de biscoito cream
cracker quase cheio. “Hoje consegui comer um biscoito. Sinto-me melhor”, ela
falou confiante. No estado dela um biscoito era suficiente. Para quem sempre
gostou de cozinhar e comer de tudo aquilo era um impropério. Tentei animá-la
dizendo que precisamos de muito pouco para sobreviver, e, mesmo assim, queremos
muito para viver.
A enfermeira bateu na
porta e foi logo entrando. Era hora do banho. Pedi desculpas por estar na hora
errada. Não queria atrapalhar o trabalho de ninguém. Ela simplesmente olhou
para baixo. Não consegui ver as feições dela. Acho que não me escutou. Porém, a
companheira de quarto, uma mulher gorda e asmática, mesmo no oxigênio, disse
para mim: “Aqui não existe tempo, muito menos hora errada”. Ela estava certa,
pois o que elas podiam fazer a não ser esperar. Estava ali há vinte dias, sem
previsão de alta. Tudo dependia dela, ou melhor, do organismo se curar. Acreditamos
que temos livre-arbítrio e, portanto, somos nós a decidir. Não é bem assim. Temos
os nossos escombros inconscientes que também vão decidir por nós. Eles também
ditam as regras de nossa sobrevivência. São nos escombros a ficar a soma de
nossas ações durante a vida.
Minha amiga se direcionou
com dificuldade para o banho e só fiquei a observar, até que a enfermeira
fechou a porta e tudo se encerrou.
Ela se foi, deixando o céu azul.
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