3 de agosto de 2012

Morrer é uma possibilidade




Nunca podemos afirmar que o momento da morte esteja próximo. Muito menos ter razão para ela. O que sabemos é que estamos indo nessa direção. Por sermos humanos temos um lobo cerebral (pré-frontal) mais evoluído do que de outras espécies. Há séculos nos vangloriamos de nossa conquista antropogênica. Todavia, essa região cerebral nos concede a capacidade de divagar no tempo do futuro, antecipar acontecimentos que nunca surgirão, criar inseguranças sem relevâncias, fantasiar sonhos improváveis. Somente os humanos criam imagens mentais de um tempo não experimentado.

Hoje fui visitar uma senhora no hospital. Ela está internada há duas semanas, à espera de cirurgia. Ao abrir a porta do quarto avistei uma pessoa a cochilar com a boca aberta. O sono parecia preencher o nada da expectativa. Assim que o meu corpo ficou visível à percepção dela, a boca se fechou e seus olhos lacrimejaram. “Ganhei o dia”, ela disse sorrindo. Senti a minha figura dar um complemento para aquele quarto abarrotado de tédio. Aproximei-me e dei um abraço demorado, ela começou a me contar sua peregrinação de exames e medicamentos. Nos seus olhos amarelados avistei a dúvida entre o viver e o morrer. Ela não estava aflita, mas não descartava a possibilidade de ter de partir. O corpo mirrado pelas duas semanas de internação anunciava fraqueza, não desistência.

Tentei não pensar em hipóteses de futuro, mas não deixei de procurar prenúncios da morte naquele corpo. Ao mesmo tempo em que pensei estar elucubrando. Nada real. O meu cérebro buscava explicações para o acontecimento.

No hospital qualquer um é tratado como máquinas defeituosas. Não é habitat humano. Ela me relatou que o médico disse que só estava aguardando a “peça” chegar para fazer a cirurgia. Ele já havia encomendado o “artefato” para o “procedimento”. Eu sei que é desse jeito porque é assim que os profissionais aprendem. A burocracia pode matar mais do que qualquer infecção.

Ela estava na fila de embarque, como numa estação de trem. Ela já havia comprado o bilhete, sem saber como seria a viagem. Desconhecia o destino. Não podemos saber o que nos aguarda após o túnel. Mas, acredito ser importante construir uma imagem de satisfação. Disse a ela para pensar no retorno ao lar, no aconchego de um lugar conhecido. Assim seria mais fácil suportar aquele ambiente. Percebi os seus olhos brilharem, mesmo distante de certezas.

A razão tem o seu limite. Estava sentado à frente dela enquanto via um pacote de biscoito cream cracker quase cheio. “Hoje consegui comer um biscoito. Sinto-me melhor”, ela falou confiante. No estado dela um biscoito era suficiente. Para quem sempre gostou de cozinhar e comer de tudo aquilo era um impropério. Tentei animá-la dizendo que precisamos de muito pouco para sobreviver, e, mesmo assim, queremos muito para viver.

A enfermeira bateu na porta e foi logo entrando. Era hora do banho. Pedi desculpas por estar na hora errada. Não queria atrapalhar o trabalho de ninguém. Ela simplesmente olhou para baixo. Não consegui ver as feições dela. Acho que não me escutou. Porém, a companheira de quarto, uma mulher gorda e asmática, mesmo no oxigênio, disse para mim: “Aqui não existe tempo, muito menos hora errada”. Ela estava certa, pois o que elas podiam fazer a não ser esperar. Estava ali há vinte dias, sem previsão de alta. Tudo dependia dela, ou melhor, do organismo se curar. Acreditamos que temos livre-arbítrio e, portanto, somos nós a decidir. Não é bem assim. Temos os nossos escombros inconscientes que também vão decidir por nós. Eles também ditam as regras de nossa sobrevivência. São nos escombros a ficar a soma de nossas ações durante a vida.

Minha amiga se direcionou com dificuldade para o banho e só fiquei a observar, até que a enfermeira fechou a porta e tudo se encerrou.

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