1 de setembro de 2012

Rosinha na Janela



Todos os dias no fim da tarde, lá pelas cinco e meia, mais ou menos, Rosinha iniciava seu ritual diário. Abria a janela e se debruçava no parapeito para assistir o cotidiano se dissipar, pessoas indo para casa após a jornada de trabalho. Colocava parte da cabeça para fora como numa guilhotina. Ali ficava até a hora da novela das sete, hora esta em que era chamada para servir o jantar. Ela não voltava para casa como os outros, pois não tinha uma. O que conseguia era fechar a janela e retornar ao seu quartinho dos fundos. Lá cabia tudo, mesmo porque ela não adquirira nada mesmo. A patroa justificava que ela não era vaidosa, era humilde, portanto não precisava de nada.

Mulher branca de cabelos pretos, embora a idade não fosse de menina, apreciava mais as tardes de céu azul, o crepúsculo era menos triste. Naqueles dias o brilho era tão diferente que a pele de Rosinha parecia não revelar as manchas marrons do seu rosto. Ela gostava do céu sem nuvens. Preferia assim, sem resquícios.

Ela veio de longe, lá do interior de Minas, para trabalhar na casa de Dona Matilde. Ela havia prometido à mãe de Rosinha que cuidaria bem dela e ainda pagaria um bom salário. Filha de doméstica e pai morto, irmã de oito, não teria chances no interior. Sem janelas de oportunidades o melhor era mudar para a cidade, a sua última e única mudança.

Rosinha, adolescente e cheia de deslumbramentos, pensou que iria para a cidade grande, mas Dona Matilde morava num lugarejo no interior do Rio de Janeiro. Ela trocou seis por meia dúzia. Uma vez lá, não tinha como retornar. O passado recente ficava para trás rapidamente. Lembro-me de Dona Matilde dizer para a minha mãe: “Fomos ao interior pegar Rosinha para trabalhar com a gente”. Ela tinha receio de que pensassem que Rosinha fizesse parte da família.

O tempo parecia não ter significado para Rosinha. Abrir a janela era apenas uma possibilidade de visão. Não se pensa em futuro quando não se tem uma estrada aberta.

Durante anos vi Rosinha debruçada naquela janela. Existem cenas em nossa memória a não se desvanecer nunca. Rosinha sempre esteve na janela de minha lembrança. Quando eu passava por ali, depois de um dia de brincadeira, a cena me incomodava. Eu questionava: Por que ela não se mudava daquela casa? O que ela sentia? Ela não tinha ambição, ou roubaram o pouco que ela podia ter? Qual a verdadeira história dela que ninguém contava?

Rosinha nunca se casara, era mulher solitária, sem família, nasceu para servir. Suas asas atrofiaram de tanta resignação. Agora não podia mais voar. Estava velha também. Diziam que ela não “batia bem das bolas”. É fácil explicar os reveses da vida desse modo. Se existia algum segredo naquela história ninguém sabia. Todos nós possuímos segredos. Muitas vezes eles são tão insignificantes que não interessam a ninguém. Eu adoro segredos, tenho até uma caixa para guardá-los. Mas os segredos de Rosinha eu não consegui acessar. Vou ter de me contentar em ficar sem eles. Hoje trabalho com segredos de meus pacientes. Naquela época só tinha curiosidade. Curiosidade esta que foi uma preparação para o meu trabalho atual. O corpo é a nossa caixa que coleciona todos os segredos.

Uma coisa eu sei, Rosinha não escolheu deliberadamente se tornar estátua pública das cinco e meia da tarde infinitum. Houve algo que retirou seus recursos para se mobilizar, a fim de encontrar a direção da própria vida.

Quantas pessoas ficam sem se mexer, envelhecem e morrem no mesmo lugar, depois de anos de resignação. Essas pessoas são como seres de pedra, só servem a uma situação, obedecer aos comandos alheios. Ontem ao passar pela rua escutei um candidato a vereador dizer a uns meninos que saiam de uma escola pública: “Estudem para não ficar na mão dos outros”. Ele está certo. Pena que as pessoas ainda pensem que estudar é o mesmo que decorar para passar na prova. Conheço tantos doutores que estão na mão dos outros. A liberdade pressupõe reflexão daquilo que se aprende.

A falta de movimento é uma tragédia. O corpo necessita se movimentar para vislumbrar novas paisagens. Se não, viverá como os lagartos em cima de pedras, só se movimentando por impulsos da natureza.
Sinto uma espécie de melancolia ao me lembrar de Rosinha. O corpo dela aprisionou o desejo de ir. Ela não encontrou a chave para abrir a porta. O máximo que conseguiu foi abrir uma janela durante toda a vida.     


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