Todos os dias no fim
da tarde, lá pelas cinco e meia, mais ou menos, Rosinha iniciava seu ritual
diário. Abria a janela e se debruçava no parapeito para assistir o cotidiano se
dissipar, pessoas indo para casa após a jornada de trabalho. Colocava parte da
cabeça para fora como numa guilhotina. Ali ficava até a hora da novela das
sete, hora esta em que era chamada para servir o jantar. Ela não voltava para
casa como os outros, pois não tinha uma. O que conseguia era fechar a janela e
retornar ao seu quartinho dos fundos. Lá cabia tudo, mesmo porque ela não
adquirira nada mesmo. A patroa justificava que ela não era vaidosa, era humilde,
portanto não precisava de nada.
Mulher branca de
cabelos pretos, embora a idade não fosse de menina, apreciava mais as tardes de
céu azul, o crepúsculo era menos triste. Naqueles dias o brilho era tão
diferente que a pele de Rosinha parecia não revelar as manchas marrons do seu
rosto. Ela gostava do céu sem nuvens. Preferia assim, sem resquícios.
Ela veio de longe, lá
do interior de Minas, para trabalhar na casa de Dona Matilde. Ela havia
prometido à mãe de Rosinha que cuidaria bem dela e ainda pagaria um bom
salário. Filha de doméstica e pai morto, irmã de oito, não teria chances no
interior. Sem janelas de oportunidades o melhor era mudar para a cidade, a sua
última e única mudança.
Rosinha, adolescente e
cheia de deslumbramentos, pensou que iria para a cidade grande, mas Dona
Matilde morava num lugarejo no interior do Rio de Janeiro. Ela trocou seis por
meia dúzia. Uma vez lá, não tinha como retornar. O passado recente ficava para
trás rapidamente. Lembro-me de Dona Matilde dizer para a minha mãe: “Fomos ao
interior pegar Rosinha para trabalhar com a gente”. Ela tinha receio de que pensassem
que Rosinha fizesse parte da família.
O tempo parecia não
ter significado para Rosinha. Abrir a janela era apenas uma possibilidade de
visão. Não se pensa em futuro quando não se tem uma estrada aberta.
Durante anos vi
Rosinha debruçada naquela janela. Existem cenas em nossa memória a não se
desvanecer nunca. Rosinha sempre esteve na janela de minha lembrança. Quando eu
passava por ali, depois de um dia de brincadeira, a cena me incomodava. Eu
questionava: Por que ela não se mudava daquela casa? O que ela sentia? Ela não
tinha ambição, ou roubaram o pouco que ela podia ter? Qual a verdadeira
história dela que ninguém contava?
Rosinha nunca se
casara, era mulher solitária, sem família, nasceu para servir. Suas asas
atrofiaram de tanta resignação. Agora não podia mais voar. Estava velha também.
Diziam que ela não “batia bem das bolas”. É fácil explicar os
reveses da vida desse modo. Se existia algum segredo naquela história ninguém sabia. Todos
nós possuímos segredos. Muitas vezes eles são tão insignificantes que não interessam
a ninguém. Eu adoro segredos, tenho até uma caixa para guardá-los. Mas os
segredos de Rosinha eu não consegui acessar. Vou ter de me contentar em ficar
sem eles. Hoje trabalho com segredos de meus pacientes. Naquela época só tinha
curiosidade. Curiosidade esta que foi uma preparação para o meu trabalho atual.
O corpo é a nossa caixa que coleciona todos os segredos.
Uma coisa eu sei,
Rosinha não escolheu deliberadamente se tornar estátua pública das cinco e meia
da tarde infinitum. Houve algo que
retirou seus recursos para se mobilizar, a fim de encontrar a direção da
própria vida.
Quantas pessoas ficam
sem se mexer, envelhecem e morrem no mesmo lugar, depois de anos de resignação.
Essas pessoas são como seres de pedra, só servem a uma situação, obedecer aos
comandos alheios. Ontem ao passar pela rua escutei um candidato a vereador
dizer a uns meninos que saiam de uma escola pública: “Estudem para não ficar na
mão dos outros”. Ele está certo. Pena que as pessoas ainda pensem que estudar é
o mesmo que decorar para passar na prova. Conheço tantos doutores que estão na
mão dos outros. A liberdade pressupõe reflexão daquilo que se aprende.
A falta de movimento é
uma tragédia. O corpo necessita se movimentar para vislumbrar novas paisagens.
Se não, viverá como os lagartos em cima de pedras, só se movimentando por
impulsos da natureza.
Sinto uma espécie de
melancolia ao me lembrar de Rosinha. O corpo dela aprisionou o desejo de ir.
Ela não encontrou a chave para abrir a porta. O máximo que conseguiu foi abrir
uma janela durante toda a vida.
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