13 de maio de 2013

Caminhante solitário


Nem todas as mães sabem lidar com as frustrações de seus filhos. Algumas se irritam ou até mesmo sentem uma necessidade de educar, como se isso fosse algo que viesse de fora, de alguém a ver a cena através de uma janela.  Minha mãe sabia me educar e me proteger ao mesmo tempo. Ela tinha uma técnica infalível.  Eu não suportava frustação, e quando acontecia eu aprontava. Jogava ovo na cabeça das pessoas, cortava os fios das antenas de TV e, principalmente, fazia fogueira. Adorava me arriscar debaixo da cama. Lá, o silêncio era um companheiro. Não queria a interferência de ninguém, queria a solidão como cúmplice. Sei que todas as minhas ações eram uma maneira de extravasar a raiva. Toda frustração vem acompanhada de tristeza e raiva. Muitas mães não sabem lidar com a raiva, até mesmo porque a raiva é uma emoção forte, reprimida culturalmente entre as mulheres, principalmente. Ao invés de dar bronca ou surra, a minha mãe me chamava para conversar e me educar. Era um gesto de carinho, porém tinha de vir acompanhado de algo sensorial. Ela sabia se eu não tivesse algo a mais eu não aprenderia. Ela estava certa. Talvez eu não me lembrasse de seu gesto caso ela não tivesse um antídoto para as frustrações. Ela me preparava um prato de gemada. Batia as gemas com bastante açúcar até virar um creme amarelo consistente, misturava leite quente para dissolver aquela massa inebriante. Comia tudo, ao mesmo tempo em que tomava vários copos d’água para amenizar o anestesiante gosto de açúcar em minhas papilas gustativas. A água servia como uma pausa. Eu chegava ao enjoo de tanta água, ovo e açúcar, mas a frustração se curava completamente. A gemada era o carinho em demasia. Enquanto comia podia estar mais próximo de mim mesmo e rever minhas ações.

O paladar é um sentido de intimidade, pois não podemos senti-lo à distância. Sentia-me protegido comendo a gemada com a minha mãe ao lado. O paladar não é só um sentido íntimo, ele é também um ato de socialização. A solidão é mais marcante quando nos alimentamos sozinhos. Sentar à mesa e conversar é um ato de comunhão – “dividir o pão”. Minha mãe que era uma mulher supersticiosa dizia que “comida não se joga fora. É pecado”. Se eu não aguentava comer toda a gemada ela se encarregava de comer o que sobrava. Com ela aprendi lições de simplicidade, e até hoje sinto a lembrança do gosto de gemada quando me sinto desprotegido.

Ao envelhecer mais e mais, tive de aprender a contar comigo mesmo. Mesmo porque a minha mãe morreu, e eu me senti sozinho. Eu não sei se você já se sentiu assim. Eu já era casado, com filhas, mesmo assim algo profundo me dizia que eu havia ficado sozinho no mundo. Não sinto isso como algo ruim, pelo contrário, eu aprendi que todos nós somos caminhantes solitários, o outro pode estar disponível como companheiro, mas quem decide a direção é somente você.

Quem não aceita a própria solidão possui dificuldade em saber quem é.  Aprendi ao longo dos anos que não adianta acumular para ter segurança. O que eu fazia antes era engordar para me proteger. Tive de aprender ter um corpo forte para dias de ventanias. A gemada fez parte do tempo da infância, e ficou por lá. Hoje, cresci e aprendi a estar comigo o tempo todo. O presente é o meu tempo.

Não raro, as pessoas continuam na infância, sem saberem. Elas não conseguem lograr o crescimento porque aqueles momentos deram a elas significados marcantes. Cresceram na forma, não através da consciência, portanto sofrem.

O que eu aprendi estando sozinho é que devo ter braços longos e meigos para me abraçar, e evitar as mãos firmes para controlar o meu próprio destino.
      

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