Sou uma alma fadada à imperfeição. Mesmo sabendo disso
ainda busco saciar a minha sede de conhecimento como um cão sedento em frente
ao mar. São os meus instintos a me levar na direção do saber, muito menos a
minha razão do querer. Sei que não chegarei ao lugar idealizado, mesmo assim
continuo. Como escreveu Fernando Pessoa:
"Adoramos
a perfeição, porque a não podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O
perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito."
Preciso ajudar as pessoas a encontrarem a si mesmas. Lido
com o imperfeito. Porventura eu precise menos de conhecimento do que a intuição
do saber. Eu aprendi, mas me renovo a cada dia. Sei que vivemos metade da vida
adquirindo e a outra metade perdendo para ser. A xícara precisa estar em
conformidade com o seu conteúdo.
Atualmente eu entendo que temos de ter autonomia. Para
se conseguir a autonomia é preciso descobrir dentro de si a própria autoridade.
A sombra habita cada um, dividindo-o, não permitindo ser um indivíduo, aquele
que não se divide. Cada um é um todo, mas a sombra é o esconderijo. Será
preciso se esconder tanto? A força da auto-expressão é uma força superior a
ajudar a encontrar a autoridade interior, iluminando os cantos escuros,
dissolvendo sombras.
Pensando nisso, tento ensinar as pessoas com as quais
me relaciono terapeuticamente a encontrar a própria autoridade a cada desafio.
A vida dá a lição, mas cada um, individualmente, tem de escolher a metodologia
para a sua realidade. Eu vejo com os meus olhos, não posso emprestá-los a
ninguém. Ando com as minhas próprias pernas, não posso emprestar os meus
chinelos.
Hoje eu tive um encontro interessante com uma mulher
de 82 anos que se recusou a tomar remédios receitados por um médico que não a
conhecia. Ela havia ido à consulta pela primeira vez. Ele a olhou e disse que
ela era triste, então resolveu prescrever dois antidepressivos e um remédio
para dormir. Ela dorme bem, e não está triste. Por que ele a analisou dessa
maneira? Talvez porque quem tem um martelo na mão tudo é prego. Não sei dizer.
O que sei é que ela utilizou os seus instintos e autoridade interior.
Ele nem sequer explicou o que estava receitando,
apenas disse que ela se sentiria melhor com eles. Ela me falou que sabe
costurar sua própria roupa. Como costureira aprendeu a conhecer o molde de seu
corpo. Segundo ela, quem sabe o corpo que tem sabe também o que necessita. Ela
sabe o que sente. Sabe que não está triste, muito menos depressiva. Se o médico
avaliou uma suposta depressão e ela não se sente assim, no mínimo é algo para
ser conversado, não imposto. O diálogo terapêutico é fundamental. Ninguém deve
tolerar imposições. Toda técnica terapêutica deve ser explicitada. Vivemos a
era do conhecimento aberto. O profissional tem o conhecimento, mas não tem o
corpo de quem sofre. Perguntei se ele olhou para ela? Ela disse que não.
"Ele apenas quis me agradar, dizendo que eu era simpática". Ela
declinou ao elogio. "Eu sei que não sou simpática". Eu concordei com
ela. Ela não é uma mulher antipática, simpática também não. Ela é quem é.
Elogio sem fundamentação pode ser mal visto para quem usa o autoconhecimento
como instrumento para ser melhor.
São pessoas como ela que me fazem seguir além de mim
mesmo. Sei que posso contribuir com as pessoas que atendo, dando a elas a
chance de pensarem sobre elas mesmas. Sou questionado todos os dias. Não vejo
isso como afronta aos meus conhecimentos. Conhecimento válido é doado. Poder
válido é permitir poder ao outro. Penso que as pessoas mais velhas precisam
encontrar sua autonomia de pensamento. Isso sim é uma grande possibilidade de
liberdade.
Somos humanos, porquanto somos humildes por imanência.
Quem não o é deve aprender a sê-lo. O tecnocentrismo e o mecanicismo vão contra
o fluxo da vida. Se quisermos ser humanos temos de reivindicar o nosso direito
de ser como tal. Isto é, cabe a cada um de nós, individualmente, encontrar a
própria saída. Quem sente está no caminho certo.
Enfim, como dizia Fernando Pessoa:
"Não
são os êxtases do abstrato, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar
uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos
mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas
quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu,
mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada, e acabe o romance que não
tinha enredo.".
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