27 de maio de 2013

Ser humano é saber sentir




Sou uma alma fadada à imperfeição. Mesmo sabendo disso ainda busco saciar a minha sede de conhecimento como um cão sedento em frente ao mar. São os meus instintos a me levar na direção do saber, muito menos a minha razão do querer. Sei que não chegarei ao lugar idealizado, mesmo assim continuo. Como escreveu Fernando Pessoa:

"Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito."

Preciso ajudar as pessoas a encontrarem a si mesmas. Lido com o imperfeito. Porventura eu precise menos de conhecimento do que a intuição do saber. Eu aprendi, mas me renovo a cada dia. Sei que vivemos metade da vida adquirindo e a outra metade perdendo para ser. A xícara precisa estar em conformidade com o seu conteúdo.

Atualmente eu entendo que temos de ter autonomia. Para se conseguir a autonomia é preciso descobrir dentro de si a própria autoridade. A sombra habita cada um, dividindo-o, não permitindo ser um indivíduo, aquele que não se divide. Cada um é um todo, mas a sombra é o esconderijo. Será preciso se esconder tanto? A força da auto-expressão é uma força superior a ajudar a encontrar a autoridade interior, iluminando os cantos escuros, dissolvendo sombras. 

Pensando nisso, tento ensinar as pessoas com as quais me relaciono terapeuticamente a encontrar a própria autoridade a cada desafio. A vida dá a lição, mas cada um, individualmente, tem de escolher a metodologia para a sua realidade. Eu vejo com os meus olhos, não posso emprestá-los a ninguém. Ando com as minhas próprias pernas, não posso emprestar os meus chinelos.

Hoje eu tive um encontro interessante com uma mulher de 82 anos que se recusou a tomar remédios receitados por um médico que não a conhecia. Ela havia ido à consulta pela primeira vez. Ele a olhou e disse que ela era triste, então resolveu prescrever dois antidepressivos e um remédio para dormir. Ela dorme bem, e não está triste. Por que ele a analisou dessa maneira? Talvez porque quem tem um martelo na mão tudo é prego. Não sei dizer. O que sei é que ela utilizou os seus instintos e autoridade interior. 

Ele nem sequer explicou o que estava receitando, apenas disse que ela se sentiria melhor com eles. Ela me falou que sabe costurar sua própria roupa. Como costureira aprendeu a conhecer o molde de seu corpo. Segundo ela, quem sabe o corpo que tem sabe também o que necessita. Ela sabe o que sente. Sabe que não está triste, muito menos depressiva. Se o médico avaliou uma suposta depressão e ela não se sente assim, no mínimo é algo para ser conversado, não imposto. O diálogo terapêutico é fundamental. Ninguém deve tolerar imposições. Toda técnica terapêutica deve ser explicitada. Vivemos a era do conhecimento aberto. O profissional tem o conhecimento, mas não tem o corpo de quem sofre. Perguntei se ele olhou para ela? Ela disse que não. "Ele apenas quis me agradar, dizendo que eu era simpática". Ela declinou ao elogio. "Eu sei que não sou simpática". Eu concordei com ela. Ela não é uma mulher antipática, simpática também não. Ela é quem é. Elogio sem fundamentação pode ser mal visto para quem usa o autoconhecimento como instrumento para ser melhor. 

São pessoas como ela que me fazem seguir além de mim mesmo. Sei que posso contribuir com as pessoas que atendo, dando a elas a chance de pensarem sobre elas mesmas. Sou questionado todos os dias. Não vejo isso como afronta aos meus conhecimentos. Conhecimento válido é doado. Poder válido é permitir poder ao outro. Penso que as pessoas mais velhas precisam encontrar sua autonomia de pensamento. Isso sim é uma grande possibilidade de liberdade.

Somos humanos, porquanto somos humildes por imanência. Quem não o é deve aprender a sê-lo. O tecnocentrismo e o mecanicismo vão contra o fluxo da vida. Se quisermos ser humanos temos de reivindicar o nosso direito de ser como tal. Isto é, cabe a cada um de nós, individualmente, encontrar a própria saída. Quem sente está no caminho certo.

Enfim, como dizia Fernando Pessoa:


"Não são os êxtases do abstrato, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu, mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada, e acabe o romance que não tinha enredo.". 

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