9 de junho de 2013

Vivemos pelos dois lados




Um monge foi a uma loja e comprou quinhentos peixinhos. Caminhou até a praia. Abençoou todos eles e despejou os baldes no mar. De repente apareceu um bando de pelicanos. O monge correu de um lado para o outro, agitando seu manto para tentar afastar as aves. O que ele conseguiu foi favorecer um banquete para os pelicanos. O que é bom para pelicanos é ruim para peixes. O monge optou por um dos lados.

A vida é ambiguidade. Nenhuma escolha é imparcial, ela tem suas repercussões. Não é possível bater palmas com uma só mão. A mão destra e a mão sinistra se coordenam para a ação. Acreditamos que podemos manter um só lado, mas não é possível. Essa mentira é contada para nós mesmos desde muito cedo. Nossos pais nos ensinaram a ser bons, mas nós crianças, não raro, víamos atitudes diferentes. Por exemplo, na minha casa, eu via a minha mãe dar roupas velhas e comida para a empregada levar para casa, mas não aceitava pagá-la com um salário merecido. As donas de casa vizinhas compactuavam com isso.

Você já pensou que pode ter magoado alguém sem ter se dado conta? Eu sempre reflito sobre isso.  Até mesmo porque eu fui professor. Quando um aluno se reprova – porque não é o professor a reprovar – ele culpa o outro, e não deixa de se sentir magoado e prejudicado. O aluno maduro sabe disso, porque assume sua responsabilidade. Ser responsável é assumir quem se é.

Quem já terminou um relacionamento sabe que o outro ficou magoado. Adolescentes magoam os pais ao desobedecê-los. Uma piada pode magoar alguém. Também magoamos a nós mesmos quando elogiamos o que não gostamos, rimos para não perder o lugar social, achamos que podemos controlar a nós mesmos e nos frustramos, recusamos as nossas diferenças, queremos ser o outro por acreditar que ele é melhor, construímos ideias de grandeza, pensamos pequeno, recusamos o nosso próprio corpo, assim por diante.

Quando recusamos o nosso corpo algo maior em nós se desfragmenta. Não devemos nos esquecer de que o sistema nervoso não é uma ficção; ele é também parte do corpo físico, e nossa alma existe em nós, como os dentes na boca.  O corpo não pode ser violado para sempre impunemente. Sentiremos a dor como manifestação de nossa recusa e repressão.

Ser saudável é ser íntegro. Não basta fazer exercícios físicos, ter boa alimentação, eliminar hábitos insalubres, ir ao médico frequentemente. A integridade é o todo cujas partes se inter-relacionam com um dinamismo coerente.

De todas as mentiras que nos contam desde cedo é a de que temos de sofrer para ser melhor, crescer, purificar a alma, etc. isso é uma falácia, pois muitos sofredores não conseguem melhorar. Pelo contrário, elas ficam revoltadas e piores.

Temos de aprender que a existência pressupõe sofrer. Por outro lado, no mundo não há somente sofrimento, porque a vida se estrutura de ambiguidades. De vez em quando, nós recebemos os nossos prêmios, momentos de satisfação e deleite. São nesses momentos pelos quais passamos que temos de saber investir no que há de melhor para nós. Conhecer o que nos traz satisfação pura. Comumente esses momentos são de simplicidade.  Quando estamos com aqueles que podemos gargalhar sem tempero, dançar sem remorsos, sorrir com olhos desmascarados. Isto é, somos melhores quando nos despimos das couraças. Infelizmente, ficamos sobre a casca a maior parte do tempo, temendo estarmos suscetíveis à desaprovação.


Nos relacionamentos de simplicidade não há pregas, emaranhamento ou bolor. O ar é o mesmo para todos que compartilham o instante. Não existe relógio a marcar a passagem, não existe o cair da noite nem tampouco a chegada do sono. O instante é eterno.

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