Um monge foi a uma loja e comprou
quinhentos peixinhos. Caminhou até a praia. Abençoou todos eles e despejou os
baldes no mar. De repente apareceu um bando de pelicanos. O monge correu de um
lado para o outro, agitando seu manto para tentar afastar as aves. O que ele
conseguiu foi favorecer um banquete para os pelicanos. O que é bom para
pelicanos é ruim para peixes. O monge optou por um dos lados.
A vida é ambiguidade. Nenhuma
escolha é imparcial, ela tem suas repercussões. Não é possível bater palmas com
uma só mão. A mão destra e a mão sinistra se coordenam para a ação. Acreditamos
que podemos manter um só lado, mas não é possível. Essa mentira é contada para
nós mesmos desde muito cedo. Nossos pais nos ensinaram a ser bons, mas nós
crianças, não raro, víamos atitudes diferentes. Por exemplo, na minha casa, eu
via a minha mãe dar roupas velhas e comida para a empregada levar para casa,
mas não aceitava pagá-la com um salário merecido. As donas de casa vizinhas
compactuavam com isso.
Você já pensou que pode ter magoado
alguém sem ter se dado conta? Eu sempre reflito sobre isso. Até mesmo porque eu fui professor. Quando um
aluno se reprova – porque não é o professor a reprovar – ele culpa o outro, e
não deixa de se sentir magoado e prejudicado. O aluno maduro sabe disso, porque
assume sua responsabilidade. Ser responsável é assumir quem se é.
Quem já terminou um relacionamento sabe que o outro ficou
magoado. Adolescentes magoam os pais ao desobedecê-los. Uma piada pode magoar
alguém. Também magoamos a nós mesmos quando elogiamos o que não gostamos, rimos
para não perder o lugar social, achamos que podemos controlar a nós mesmos e
nos frustramos, recusamos as nossas diferenças, queremos ser o outro por
acreditar que ele é melhor, construímos ideias de grandeza, pensamos pequeno,
recusamos o nosso próprio corpo, assim por diante.
Quando recusamos o nosso corpo algo maior em nós se
desfragmenta. Não devemos nos esquecer de que o sistema nervoso não é uma ficção;
ele é também parte do corpo físico, e nossa alma existe em nós, como os dentes
na boca. O corpo não pode ser violado
para sempre impunemente. Sentiremos a dor como manifestação de nossa recusa e
repressão.
Ser saudável é ser íntegro. Não basta fazer exercícios
físicos, ter boa alimentação, eliminar hábitos insalubres, ir ao médico
frequentemente. A integridade é o todo cujas partes se inter-relacionam com um dinamismo
coerente.
De todas as mentiras que nos contam desde cedo é a de que
temos de sofrer para ser melhor, crescer, purificar a alma, etc. isso é uma
falácia, pois muitos sofredores não conseguem melhorar. Pelo contrário, elas
ficam revoltadas e piores.
Temos de aprender que a existência pressupõe sofrer. Por
outro lado, no mundo não há somente sofrimento, porque a vida se estrutura de
ambiguidades. De vez em quando, nós recebemos os nossos prêmios, momentos de
satisfação e deleite. São nesses momentos pelos quais passamos que temos de saber
investir no que há de melhor para nós. Conhecer o que nos traz satisfação pura.
Comumente esses momentos são de simplicidade. Quando estamos com aqueles que podemos
gargalhar sem tempero, dançar sem remorsos, sorrir com olhos desmascarados.
Isto é, somos melhores quando nos despimos das couraças. Infelizmente, ficamos sobre
a casca a maior parte do tempo, temendo estarmos suscetíveis à desaprovação.
Nos relacionamentos de simplicidade não há pregas,
emaranhamento ou bolor. O ar é o mesmo para todos que compartilham o instante.
Não existe relógio a marcar a passagem, não existe o cair da noite nem tampouco
a chegada do sono. O instante é eterno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário