A chuva cai, enquanto eu me
recupero de uma diarreia sorrateira. Ora ela surge, ora não. Tenho uma certa dificuldade
em saber o seu destino. Não sei até quando ela durará. Obviamente, eu quero que
ela se despeça de mim, mas sei também que o meu organismo tem o próprio tempo. Ele
é uma entidade autônoma. Apesar de eu sofrer com as cólicas, sei que o meu
corpo se organiza de alguma maneira. Como ele faz isso, eu não posso afirmar. A
fisiologia deve ser questionada sempre. Essa lenga-lenga de virose não cabe
mais. Estamos atravessando uma época em que as hegemonias estão caindo por
terra. Não podemos dar trela à interpretoses
furadas. Se estou sendo rude, é pelo fato de eu estar com diarreia, e o meu
intestino pensar por mim.
Eu só quero acreditar que a chuva
lave a lama que eu mesmo criei, por intermédio de meus pensamentos não
conscientes. Eu ainda creio assim, mas não deixo de duvidar. Se eu não duvidar
não vou adiante. Segundo George Lakoff, em seu livro “Philosophy in the flesh”,
95% de nossos pensamentos são inconscientes (eu não sei como ele chegou a esse
número). Lakoff não se refere ao inconsciente de Freud, mas ao inconsciente
cognitivo. Seria melhor ele ter utilizado o termo “Não-Consciente”, porque
assim não confundiria com a tese de Freud, na qual o inconsciente é o
reprimido. O autor deixa claro que ele não se refere ao trabalho de Freud, e
sim às ciências cognitivas.
A pergunta pode parecer simples,
mas o caminho do pensamento e do sentimento são diferentes. Nem sempre conseguimos
coadunar ambos. Mesmo porque a nossa cultura preconiza que a razão é mais
importante do que a emoção. Não existe uma coisa sem a outra. Hoje sabemos que
a emoção pinta o cenário de nossas decisões racionais. Se não fosse assim a
vida não teria nenhuma graça. São as emoções que dão roupagens aos nossos
personagens. E, como criamos vários personagens para estarem em nossa história
cotidiana, acabamos equivocados sobre várias coisas. Precisamos nos contentar
com as nossas limitações. Elas nos propiciam a incerteza.
Eu não posso dizer que eu me
senti mal por um acontecimento ou outro, mas posso dizer que algo estranho não foi
bem elaborado. Quando o meu corpo se manifesta por sintomas sei que alguma
mudança está ocorrendo. Eu só sei que preciso aguardar. Não posso me
preocupar, porque assim os sintomas poderão ser piores. O sofrimento é por
causa de resistências.
Posso argumentar por diversos
caminhos. No fundo, sei que nada sei. Tudo é interpretação. É, portanto, a hermenêutica
a nos dar sentido, sem sabermos o porquê de várias coisas. Como já disse antes,
estou lendo outro livro chamado “Por que o mundo existe?”. Estou impressionado
como as pessoas são sedentas em saber das coisas que não conseguirão saber. Tudo
bem, é assim que caminha a ciência. Não tenho dúvida disso. Mas, não deixo de
ficar descontente com o fanatismo dos novos ateístas, os cientistas fanáticos
de plantão. Não me refiro ao autor do livro, porque ele só está a questionar
sobre o tema. Porém, no livro existem opiniões de sobra sobre se Deus existe ou
não, se o Big Bang é uma realidade, e assim por diante.
Estou escutando agora a ária “vesti
la giubba”, da ópera “I Pagliaccio”, de Ruggero Leoncavallo. Enfim, abaixo a tradução da ária:
Recitar! Enquanto tomado pelo
delírio
Não sei mais aquilo que digo e
aquilo que faço!
Todavia é necessário! Esforça-te!
vai!
Ora, és tu talvez um homem?
Tu és palhaço!
Veste o casaco e a cara
enfarinha.
O povo paga e quer rir aqui.
E se arlequim te rouba a
colombina,
Ria palhaço e cada um aplaudirá.
Muda em piadas o espasmo e o
choro,
Numa careta o soluço e a dor.
Ria, palhaço, sobre o teu amor
partido.
Ria da dor que te envenena o
coração!
Eu sempre me emociono ao ouvi-la.
Mas, hoje, ela passa a ter um sentido diferente. Porventura seja pelo estado de
meu intestino. Acredito que saber o que nos força o entendimento não é saber,
mas construir teorias satisfatórias ao ego que não suporta não ter razão.
Somos o palhaço que tem de rir da
dor que envenena o nosso coração.
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