23 de setembro de 2013

Cagando e andando




A chuva cai, enquanto eu me recupero de uma diarreia sorrateira. Ora ela surge, ora não. Tenho uma certa dificuldade em saber o seu destino. Não sei até quando ela durará. Obviamente, eu quero que ela se despeça de mim, mas sei também que o meu organismo tem o próprio tempo. Ele é uma entidade autônoma. Apesar de eu sofrer com as cólicas, sei que o meu corpo se organiza de alguma maneira. Como ele faz isso, eu não posso afirmar. A fisiologia deve ser questionada sempre. Essa lenga-lenga de virose não cabe mais. Estamos atravessando uma época em que as hegemonias estão caindo por terra. Não podemos dar trela à interpretoses furadas. Se estou sendo rude, é pelo fato de eu estar com diarreia, e o meu intestino pensar por mim.

Certa vez, uma paciente disse a mim: “Não podemos controlar o próprio intestino e queremos controlar o mundo”. De fato, nós queremos ter controle sobre todas as situações em nossas vidas. Queremos saber sobre o nosso destino, e o que conseguimos é somente arrumar justificativas coerentes. Aquelas que nos satisfazem. Ficamos felizes com migalhas. É importante pensar que não sabemos o porquê dos acontecimentos. Eles acontecem, e pronto.

Eu só quero acreditar que a chuva lave a lama que eu mesmo criei, por intermédio de meus pensamentos não conscientes. Eu ainda creio assim, mas não deixo de duvidar. Se eu não duvidar não vou adiante. Segundo George Lakoff, em seu livro “Philosophy in the flesh”, 95% de nossos pensamentos são inconscientes (eu não sei como ele chegou a esse número). Lakoff não se refere ao inconsciente de Freud, mas ao inconsciente cognitivo. Seria melhor ele ter utilizado o termo “Não-Consciente”, porque assim não confundiria com a tese de Freud, na qual o inconsciente é o reprimido. O autor deixa claro que ele não se refere ao trabalho de Freud, e sim às ciências cognitivas. 

Bem, o que quero escrever aqui é que temos respostas orgânicas baseadas em nossos pensamentos, que quase nunca são conscientes. Todo o tempo as células estão bisbilhotando os nossos pensamentos. Para Lakoff, a mente é incorporada. O que o pensamento pensa é o que o corpo reflete. Isso não é prerrogativa fácil. Segundo o autor, temos em nós os padrões de crenças e metáforas incorporadas, ou seja, elas fazem parte de nós, sem que nós possamos dar conta disso. Sendo assim, posso dizer que estou “cagando para algo”. Talvez, seja aquilo que venho lendo e não concordo. Mesmo assim, preciso levar em consideração, pois para aprender temos de abaixar a cabeça para depois sair cagando e andando. Isso é uma metáfora corporificada, talvez.  

Se eu perguntar o que você sente, talvez você me responda com um pouco de suspeita, e se pergunte: “O que eu sinto?”. Sim, quero que você reflita sobre o que você sente agora neste momento em que lê essas palavras. Porventura você poderia deixar de ser um Voyeur e escrever um comentário logo abaixo. Quero interagir com você.

A pergunta pode parecer simples, mas o caminho do pensamento e do sentimento são diferentes. Nem sempre conseguimos coadunar ambos. Mesmo porque a nossa cultura preconiza que a razão é mais importante do que a emoção. Não existe uma coisa sem a outra. Hoje sabemos que a emoção pinta o cenário de nossas decisões racionais. Se não fosse assim a vida não teria nenhuma graça. São as emoções que dão roupagens aos nossos personagens. E, como criamos vários personagens para estarem em nossa história cotidiana, acabamos equivocados sobre várias coisas. Precisamos nos contentar com as nossas limitações. Elas nos propiciam a incerteza.

Tenho utilizado uma espécie de koan zen-budista para que as pessoas se desidentifiquem com os seus papéis: “O que você foi antes de ter sido alguém?”. Um koan não é para se ter uma resposta, mas sim para criar algo sem pensamento. Uma espécie de embuste cognitivo.     

Eu não posso dizer que eu me senti mal por um acontecimento ou outro, mas posso dizer que algo estranho não foi bem elaborado. Quando o meu corpo se manifesta por sintomas sei que alguma mudança está ocorrendo. Eu só sei que preciso aguardar. Não posso me preocupar, porque assim os sintomas poderão ser piores. O sofrimento é por causa de resistências.

Posso argumentar por diversos caminhos. No fundo, sei que nada sei. Tudo é interpretação. É, portanto, a hermenêutica a nos dar sentido, sem sabermos o porquê de várias coisas. Como já disse antes, estou lendo outro livro chamado “Por que o mundo existe?”. Estou impressionado como as pessoas são sedentas em saber das coisas que não conseguirão saber. Tudo bem, é assim que caminha a ciência. Não tenho dúvida disso. Mas, não deixo de ficar descontente com o fanatismo dos novos ateístas, os cientistas fanáticos de plantão. Não me refiro ao autor do livro, porque ele só está a questionar sobre o tema. Porém, no livro existem opiniões de sobra sobre se Deus existe ou não, se o Big Bang é uma realidade, e assim por diante.

Estou escutando agora a ária “vesti la giubba”, da ópera “I Pagliaccio”, de Ruggero Leoncavallo.  Enfim, abaixo a tradução da ária:

Recitar! Enquanto tomado pelo delírio
Não sei mais aquilo que digo e aquilo que faço!
Todavia é necessário! Esforça-te! vai!
Ora, és tu talvez um homem?

Tu és palhaço!

Veste o casaco e a cara enfarinha.
O povo paga e quer rir aqui.

E se arlequim te rouba a colombina,
Ria palhaço e cada um aplaudirá.
Muda em piadas o espasmo e o choro,
Numa careta o soluço e a dor.

Ria, palhaço, sobre o teu amor partido.
Ria da dor que te envenena o coração!

Eu sempre me emociono ao ouvi-la. Mas, hoje, ela passa a ter um sentido diferente. Porventura seja pelo estado de meu intestino. Acredito que saber o que nos força o entendimento não é saber, mas construir teorias satisfatórias ao ego que não suporta não ter razão.

Somos o palhaço que tem de rir da dor que envenena o nosso coração.


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