4 de novembro de 2013

A incerteza de toda história

Nem tudo que cai é chuva.
Nem tudo que voa é vento.
Nem tudo que se pisa é terra.
Nem tudo que brilha é sol.
 
A única certeza é que não temos como escapar dos fragmentos incertos de nossa história pessoal. Se pudéssemos compreender tudo, não erraríamos jamais. O problema é e sempre será a nossa ignorância. Somos ignorantes porque não nascemos prontos. Estamos em acabamento. Porventura a morte extermine a ignorância.  Quem sabe se a morte anunciará a compreensão que tudo - aquilo que não podemos mais tocar, cheirar, ouvir, ver – nada mais é do que algo libertador? Eu penso que em decorrência da morte só nos restará a paisagem da nossa mente individual. Nela, poderemos nos regozijar. Pois não haverá mais dúvidas. Mesmo assim, isso é só uma conjectura, nada mais.
Terminei de ler o livro “Por que o mundo existe?” de Jim Holt. Ele questiona: “Por que existe algo e não apenas o nada?”. Na verdade essa pergunta é do filósofo Martin Heidegger, mas Holt busca a resposta. Obviamente que ele não a encontra, só suposições de pessoas com as quais ele se relaciona para responder a questão. De qualquer modo, o livro é uma boa aventura, tanto que eu terminei de lê-lo hoje. O que eu achei interessante é que ele termina o livro com uma resposta de um monge budista entrevistado num programa televisivo. Ele escreve:

O que é o universo, afinal de contas? Não é naturalmente o nada. Mas é algo muito próximo: um vazio – une vacuité. As coisas não têm de fato a solidez que lhes atribuímos. O mundo é como um sonho, uma ilusão. Todavia, em nosso pensamento transformamos sua fluidez em algo fixo e de aparência sólida.

No sábado eu estive num almoço na casa de meu irmão com as minhas primas que há 15 anos não via. Saí cedo e viajei quase 60 km. O dia estava incrível. O verde cintilava em contraste com o azul límpido do céu. Era um dia após uma semana inteira de muita chuva. Na viagem não deixei de me sentir bem ao ver o movimento do vento a mover as copas das mangueiras. A estrada é repleta de mangueiras centenárias. Desde a minha infância elas se tornaram testemunhas de minha admiração. Lembro-me de uma em especial que ficava numa curva da estrada. Ali, muitas mulheres vendiam mangas, e o meu pai sempre parava o carro para comprar mangas carlotinhas. Aquela lembrança me tomava por inteiro, eu chegava a sentir o cheiro e gosto da manga, sem falar nas mãos embebidas de caldo escorrido. Isso só era lembrança, construída no vazio da realidade.
Chegando ao encontro avistei a primeira prima, nos abraçamos e ela foi logo me convidando para uma festa na casa dela no próximo mês. Obviamente que ela estava excitada com o encontro e por sua característica ansiosa não conseguia permanecer no momento presente. Queria marcar outros encontros, para que seus outros irmãos e a mãe dela, minha tia, que não puderam comparecer ao almoço tivessem a boa sensação do reencontro. Ela não conseguia deixar de falar sobre novos encontros, viagens juntos: "Temos de marcar", ela afirmava com veemência. 
As outras primas chegaram bem depois. Foi emocionante ver um pedaço de minha história escondido naquelas pessoas. Assim que todos sentaram para almoçar, eu comecei a falar como um doido, num discurso irrefreável sobre a minha história após os 15 anos de distância. Também estava excitado, tanto que comecei a suar. Queria em pouco tempo dizer quem eu era agora. Infelizmente, as pessoas não falam de si, elas procuram as novidades da mídia, ou mesmo fatos em torno de algo impessoal. Eu insisti, mas logo percebi que não deveria ser um chato. Até mesmo porque havia pessoas ali que não compactuavam com a nossa história. Então, falei um pouco de minha mãe, e elas começaram a falar da família, trazendo o passado de um lugar muito distante, a história de nossos avós. Eu não conhecia aquelas histórias. Eu não sabia, por exemplo, que o meu avô tinha um livro onde anotava sobre os filhos e netos. Também não sabia sobre o sobrenome italiano de minha avó, nem tampouco que existe uma cidade com o sobrenome da família. Eu nem perguntei onde se localizava essa cidade, aqui no Brasil ou na Itália. Estava imerso em emoção apenas.
E as histórias foram tomando um rumo indescritível que eu não conseguia acompanhar, eu não fazia parte, me senti distante, como sempre acontece em relacionamento social. Não que eu não gostasse da família, pelo contrário, eu sempre gostei de minhas primas. Na infância e adolescência sempre ia para casa de meus tios. Pelo fato de elas serem um pouco mais velhas do que eu, tinha a chancela de sair com elas à noite. Sentia a sensação de que era coisa boa aquele passado, sem saber o que fazíamos na realidade. Minha memória não dava conta de saber.
Meu irmão sabia mais das histórias do que eu. Então pensei, a minha memória está falha ou eu deletei acontecimentos. Quais são os acontecimentos de minha vida que eu não deletei? Quais que eu tenho certeza de que existiram de fato? Logo percebi que eu não podia responder as minhas perguntas com certeza, pois a memória falhava. Tentava conseguir acesso, mas sem êxito. A memória é formada por interesses próprios de cada indivíduo. Eu estava à deriva de minha história familiar. Será que as pessoas criavam histórias para elas mesmas? Eu penso que sim. Será que eu havia me perdido de minha família? Eu acredito que sim. Isso me deixou com um vazio existencial.
Às vezes nós esquecemos o passado; outras vezes, nós o distorcemos. A memória não é nunca confiável. Existirá sempre um lacuna para a nossa história. Se nós quisermos acreditar em algo mais concreto, temos de nos relacionarmos. Se não for assim não conseguimos construir verdadeiramente uma história familiar. Pois, a memória é relacionamento, associação. Se não fizermos assim, construiremos solitariamente algo a nos descrever, sem ser verdadeiro.
Se existe algo, por que não poderia existir apenas o nada?        

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