Estou
me tornando um colecionador de festas de aniversário de 80 anos. No último
sábado estive na quinta festa. Estou tão próximo da história de vida das
pessoas que atendo que a minha presença acaba por se tornar fundamental. Tenho
orgulho do meu currículo de festas de 80 anos. Elas são mais importantes do que
o meu curriculum vitae, que hoje em
dia não faz diferença o que fiz ou deixei de fazer. Também já sou velho. Ao
estar mais velho valorizo mais a divisão. Quando jovem eu valorizava a soma.
Lembro-me de meu contentamento ao ter mais um item para colocar no currículo. Acreditava
que os itens fossem abrir espaços profissionais. Entretanto, nunca precisei
apresentar um currículo. As portas sempre se abriram pelo conhecimento e o modo
de me relacionar com as pessoas. Se soubermos nos relacionar bem com as pessoas
sempre teremos um lugar.
O
interessante nisso tudo é que não gosto de estar em eventos sociais. Eu não sou
o tipo de pessoa que quer frequentar festas. Porém, eu vou nas festas de
oitenta porque sei o quanto é importante essa marco na história das pessoas. Elas
confirmam a passagem do tempo linear e admitem estar vivas. Não posso negar um
convite tão honroso, principalmente porque sei o que isso significa. É um
reconhecimento de toda uma existência de luta e vitória.
Estar
presente nessas festas é muito interessante para mim, pois conheço os
personagens das histórias que são contadas apenas no consultório. Como
observador de corpos aprendo a entender mais sobre a história das pessoas. Porque
uma história se perfaz pelas relações.
Estou
lendo um livro interessante: “Por que o
mundo existe?” de Jim Holt. Ele escreve:
“Leibniz afirmava que o espaço não é uma coisa em si mesma, mas apenas uma rede de relações entre as coisas. O espaço não pode existir à parte do que está a ele relacionado”
Eu
compactuo com esse pensamento. Eu também tenho a minha história e não deixo de
me perceber pensando nos meus fragmentos de outrora.
O
sábado foi um dia tranquilo e agradável. A festa foi numa casa
encrustada na montanha. O céu era de um azul de brigadeiro, como os mais velhos
diziam por lá. Foi um dia de beleza exemplar. Com todo o conforto, não consegui
conter a memória de infância quando ia com os meus pais para o
interior de Minas Gerais para os aniversários dos velhos da família de minha
mãe.
Não
queria comparar, porque não é bom comparar eventos de nossa história. Porém, não
me contive. Acabei por me lembrar de uma festa de aniversário da tia de minha
mãe. Quando chegamos lá, fazia um calor insuportável, e o que tinha para o
almoço de comemoração era um tatu assado. Eu não queria comer algo tão
esquisito. O bicho vinha servido inteiro, aberto no centro como um corpo em
procedimento de autópsia. A cachaça não faltava nessas ocasiões. O tio de minha
mãe mostrava a garrucha a qual matou o indefeso bicho. Orgulhoso, ele queria me
ensinar a manuseá-la. Obviamente que para uma criança isso era bastante
interessante. Ele dizia que para caçar tatu era preciso usar uma lanterna, pois
o bicho notívago podia ser cegado com o feixe de luz quando direcionado diretamente
no olho.
Mesmo
com toda a explicação metodológica, eu não comi o bicho. Meu pai achava que o
meu comportamento era de orgulho. Dizia que eu deveria ser mais simples, porque
assim eu seria uma pessoa melhor. Mesmo assim, ele não conseguiu me convencer. De
fato, nunca fui uma pessoa simples. Ainda hoje me lembro de várias ocasiões em
que meu pai insistia com a sua prerrogativa de simplicidade como sinônimo de
humildade.
Atualmente
eu sei que os dois conceitos podem andar juntos, mas não significam a mesma
coisa. Isso demorou muito, mas só consegui entender ao me relacionar com
pessoas simples sem nenhuma humildade. Como também pude conhecer pessoas
complexas bastante humildes. Assumi que sou uma pessoa complexa, com
pensamentos complexos. A complexidade não significa algo ruim, pelo contrário, ela
fornece um argumento sempre relativo às questões que se apresentam. Vivo bem
assim, porque aceito a minha natureza.
Porém,
ainda é difícil estar em relação. No sábado, por exemplo, mesmo tudo se
desenrolando bem, eu não deixei de refletir sobre o ambiente em que eu estava. Por
isso, prefiro os meus finais de semana comigo mesmo. Não consigo deixar de lado
os meus radares de observação. Eles estão tão arraigados que abandoná-los seria
deixar à deriva a mim mesmo. Sendo essa opção inconcebível, para eu estar em
relação é preciso exercitar a minha presença na presença do outro. Eu sempre estou onde me coloco, inteiramente. Isso se tornou um exercício o qual pratico há anos.
Em
reuniões sociais costumo proceder assim:
1. Nunca
deixo de perceber o meu próprio corpo. Observo todos os movimentos dele e suas
nuances. Isso me dá a capacidade de estar presente e saber como agir;
2.
O
que eu falo deve ser ouvido por mim mesmo, com atenção;
3. Sempre
observo a expressão do ouvinte. Isso me ajuda saber se não estou sendo um chato
de plantão. Não quero ser desagradável no meu espaço da relação. Até mesmo
porque o que eu gosto de conversar não é o que a maioria das pessoas em uma reunião
social está acostumada. As pessoas curtem trivialidades. Eu sei me comportar,
mas se eu não prestar atenção acabo descambando para uma conversa mais “cabeça”,
como as minhas filhas costumam me alertar;
4. Não
me afasto nem um minuto de meus sentimentos. Para mim, sentir é fundamental em
todas as circunstâncias. Assim, eu posso saber o quanto a experiência é
satisfatória ou não. Aprendi a ser um colecionador de imagens mentais
satisfatórias. Eu recuso tudo o que não me traz satisfação, mesmo que eu
precise praticar isso silenciosamente. A vida é muito curta para eu desperdiçar
o meu tempo com momentos inadequados a mim;
5. Sempre
acredito que posso aprender algo novo com as pessoas que não conheço. Portanto,
não julgo ninguém. Isso favorece o meu autoconhecimento, aprender comigo mesmo através
do outro é o mais importante;
6. Perceber
os momentos de pausa entre um discurso e outro deve ser avaliado. Nesse hiato tenho
como avaliar o movimento da relação. Se alguém está à minha frente é porque ela
tem algo a me dizer. As pessoas são o que elas são, e pronto;
7. Sempre
ser generoso. A generosidade acontece quando destituímos o ego. Evitar usar
expressões como: “Eu faço...”, “Eu sou...”, “A minha...”, “O meu...”. O espaço
relacional é um espaço de troca mútua, portanto, é um lugar onde trafegamos em
conjunto, não individualmente.
Bem,
essas são algumas regras que eu utilizo para mim mesmo, para estar bem comigo e
com os outros. Obviamente não deixo de perceber o quanto as pessoas estão
alienadas no espaço de convivência. Elas se encontram em espaços solitários e
virtualmente concebidos. Por isso, é preciso exercitar a humildade para continuar a aprender com a
experiência vivida.
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