16 de setembro de 2013

Relacionar-se em dias ensolarados




Estou me tornando um colecionador de festas de aniversário de 80 anos. No último sábado estive na quinta festa. Estou tão próximo da história de vida das pessoas que atendo que a minha presença acaba por se tornar fundamental. Tenho orgulho do meu currículo de festas de 80 anos. Elas são mais importantes do que o meu curriculum vitae, que hoje em dia não faz diferença o que fiz ou deixei de fazer. Também já sou velho. Ao estar mais velho valorizo mais a divisão. Quando jovem eu valorizava a soma. Lembro-me de meu contentamento ao ter mais um item para colocar no currículo. Acreditava que os itens fossem abrir espaços profissionais. Entretanto, nunca precisei apresentar um currículo. As portas sempre se abriram pelo conhecimento e o modo de me relacionar com as pessoas. Se soubermos nos relacionar bem com as pessoas sempre teremos um lugar.

O interessante nisso tudo é que não gosto de estar em eventos sociais. Eu não sou o tipo de pessoa que quer frequentar festas. Porém, eu vou nas festas de oitenta porque sei o quanto é importante essa marco na história das pessoas. Elas confirmam a passagem do tempo linear e admitem estar vivas. Não posso negar um convite tão honroso, principalmente porque sei o que isso significa. É um reconhecimento de toda uma existência de luta e vitória.

Estar presente nessas festas é muito interessante para mim, pois conheço os personagens das histórias que são contadas apenas no consultório. Como observador de corpos aprendo a entender mais sobre a história das pessoas. Porque uma história se perfaz pelas relações.

Estou lendo um livro interessante: “Por que o mundo existe?” de Jim Holt. Ele escreve:

Leibniz afirmava que o espaço não é uma coisa em si mesma, mas apenas uma rede de relações entre as coisas. O espaço não pode existir à parte do que está a ele relacionado

Eu compactuo com esse pensamento. Eu também tenho a minha história e não deixo de me perceber pensando nos meus fragmentos de outrora.

O sábado foi um dia tranquilo e agradável. A festa foi numa casa encrustada na montanha. O céu era de um azul de brigadeiro, como os mais velhos diziam por lá. Foi um dia de beleza exemplar. Com todo o conforto, não consegui conter a memória de infância quando ia com os meus pais para o interior de Minas Gerais para os aniversários dos velhos da família de minha mãe.

Não queria comparar, porque não é bom comparar eventos de nossa história. Porém, não me contive. Acabei por me lembrar de uma festa de aniversário da tia de minha mãe. Quando chegamos lá, fazia um calor insuportável, e o que tinha para o almoço de comemoração era um tatu assado. Eu não queria comer algo tão esquisito. O bicho vinha servido inteiro, aberto no centro como um corpo em procedimento de autópsia. A cachaça não faltava nessas ocasiões. O tio de minha mãe mostrava a garrucha a qual matou o indefeso bicho. Orgulhoso, ele queria me ensinar a manuseá-la. Obviamente que para uma criança isso era bastante interessante. Ele dizia que para caçar tatu era preciso usar uma lanterna, pois o bicho notívago podia ser cegado com o feixe de luz quando direcionado diretamente no olho.

Mesmo com toda a explicação metodológica, eu não comi o bicho. Meu pai achava que o meu comportamento era de orgulho. Dizia que eu deveria ser mais simples, porque assim eu seria uma pessoa melhor. Mesmo assim, ele não conseguiu me convencer. De fato, nunca fui uma pessoa simples. Ainda hoje me lembro de várias ocasiões em que meu pai insistia com a sua prerrogativa de simplicidade como sinônimo de humildade.

Atualmente eu sei que os dois conceitos podem andar juntos, mas não significam a mesma coisa. Isso demorou muito, mas só consegui entender ao me relacionar com pessoas simples sem nenhuma humildade. Como também pude conhecer pessoas complexas bastante humildes. Assumi que sou uma pessoa complexa, com pensamentos complexos. A complexidade não significa algo ruim, pelo contrário, ela fornece um argumento sempre relativo às questões que se apresentam. Vivo bem assim, porque aceito a minha natureza.

Porém, ainda é difícil estar em relação. No sábado, por exemplo, mesmo tudo se desenrolando bem, eu não deixei de refletir sobre o ambiente em que eu estava. Por isso, prefiro os meus finais de semana comigo mesmo. Não consigo deixar de lado os meus radares de observação. Eles estão tão arraigados que abandoná-los seria deixar à deriva a mim mesmo. Sendo essa opção inconcebível, para eu estar em relação é preciso exercitar a minha presença na presença do outro. Eu sempre estou onde me coloco, inteiramente. Isso se tornou um exercício o qual pratico há anos.

Em reuniões sociais costumo proceder assim:

1.     Nunca deixo de perceber o meu próprio corpo. Observo todos os movimentos dele e suas nuances. Isso me dá a capacidade de estar presente e saber como agir;

2.      O que eu falo deve ser ouvido por mim mesmo, com atenção;

3.   Sempre observo a expressão do ouvinte. Isso me ajuda saber se não estou sendo um chato de plantão. Não quero ser desagradável no meu espaço da relação. Até mesmo porque o que eu gosto de conversar não é o que a maioria das pessoas em uma reunião social está acostumada. As pessoas curtem trivialidades. Eu sei me comportar, mas se eu não prestar atenção acabo descambando para uma conversa mais “cabeça”, como as minhas filhas costumam me alertar;

4.  Não me afasto nem um minuto de meus sentimentos. Para mim, sentir é fundamental em todas as circunstâncias. Assim, eu posso saber o quanto a experiência é satisfatória ou não. Aprendi a ser um colecionador de imagens mentais satisfatórias. Eu recuso tudo o que não me traz satisfação, mesmo que eu precise praticar isso silenciosamente. A vida é muito curta para eu desperdiçar o meu tempo com momentos inadequados a mim;

5.  Sempre acredito que posso aprender algo novo com as pessoas que não conheço. Portanto, não julgo ninguém. Isso favorece o meu autoconhecimento, aprender comigo mesmo através do outro é o mais importante;

6.    Perceber os momentos de pausa entre um discurso e outro deve ser avaliado. Nesse hiato tenho como avaliar o movimento da relação. Se alguém está à minha frente é porque ela tem algo a me dizer. As pessoas são o que elas são, e pronto;

7.     Sempre ser generoso. A generosidade acontece quando destituímos o ego. Evitar usar expressões como: “Eu faço...”, “Eu sou...”, “A minha...”, “O meu...”. O espaço relacional é um espaço de troca mútua, portanto, é um lugar onde trafegamos em conjunto, não individualmente.


Bem, essas são algumas regras que eu utilizo para mim mesmo, para estar bem comigo e com os outros. Obviamente não deixo de perceber o quanto as pessoas estão alienadas no espaço de convivência. Elas se encontram em espaços solitários e virtualmente concebidos. Por isso, é preciso exercitar a humildade para continuar a aprender com a experiência vivida. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário